O carnaval, para além de ser a mais importante manifestação cultural brasileira, é o exercício concreto e sensível de vários direitos conquistados e consagrados. Ele celebra o direito à cidade, à manifestação, à associação e o direito à liberdade de expressão. Como festa pagã e sincrética, afirma o direito à liberdade religiosa sem ser proselitista e, como representação cultural, amplia o espaço cívico para combiná-lo com festividade, criatividade e liberdade artística e cultural.
Aqueles que defendem a liberdade de expressão como instrumento de um extremismo da direita não têm legitimidade ou estatura para condenarem, perseguirem ou assediarem os que se fazem representados em cores, corpos, movimentos, cantos ou ideias vindas dos blocos de rua, desfiles, performances, rodas de samba e tantas outras maneiras de expressar a alegria e a convivência diversa na forma de festa e arte carnavalesca.
O carnaval, nas suas diversas facetas, é político. E essa característica não aparece somente nos debates promovidos através da festa, mas também pela possibilidade de desfrutar uma vida livre de censura de qualquer tipo por parte de pessoas de todas as regiões do País, em suas mais distintas realidades.
Como conta o recém-lançado documentário Enredos da liberdade: o grito do samba pela democracia, durante o momento de maior avanço autoritário (1964-1985), as escolas de samba estiveram profundamente ativas nos debates sobre nossos rumos sociopolíticos. Em seus enredos, ano a ano, criticaram o regime militar – de forma mais ou menos sutil. Essas mesmas agremiações contaram as histórias da redemocratização e da formulação de uma nova Constituição. E, além disso, daquele momento obscuro até hoje, vêm reconstruindo as memórias de um escondido passado de escravização, invasão e violência contra pessoas pretas, pardas, pobres e indígenas. Em todos esses períodos, houve tentativas de reprimir as expressões contidas em alegorias, enredos e fantasias.
Essas expressões políticas carnavalescas não se esgotaram em anos passados. Em 2023, no Rio de Janeiro, a Beija-Flor de Nilópolis entrou na avenida cantando sobre a liberdade de expressão no Brasil, questionando a história oficial da independência do País e apresentando a história do 2 de Julho (Independência do Brasil na Bahia) como um verdadeiro marco, que se tornou possível pela resistência de comunidades negras, indígenas e periféricas.
Já neste ano, o Salgueiro denunciou a violência contra o povo Yanomami, dizendo que “a chance que nos resta é um Brasil cocar”. No samba-enredo, além de tratar das violações de direitos contra esse povo indígena especificamente, narrou também a violência contra aqueles que defendem seus direitos, citando o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips – assassinados na Região Amazônica em junho de 2022.
A Portela, fazendo uma leitura do livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, propõe o reencontro de Luísa Mahin com seu filho, Luís Gama. Nessa leitura, faz analogia à separação de mães negras de seus filhos que ocorre ainda hoje, a partir da violência do Estado e da desatenção às favelas e periferias brasileiras, trazendo essas mães no último carro do desfile da escola.
Em São Paulo, a Vai-Vai reconstruiu a história do Hip Hop no Brasil, contando sobre a associação entre rap, grafitti, pixo, break dance, slam e outros, também denunciando a violência policial e o aprisionamento de pessoas que fazem parte desses movimentos de rua. O desfile trouxe a icônica figura da estátua do bandeirante Borba Gato, alvo de protestos de diversos movimentos de São Paulo nos últimos anos, pichada com palavras de ordem e resistência.
As palavras que vêm da rua incomodam. Logo após o desfile da Vai-Vai, a escola foi acusada de “demonizar” a atividade policial. Na sequência, surgiram pedidos para que a escola fosse punida e acusações de financiamento ilícito da agremiação, em evidente tentativa de criminalização da sua expressão após o incômodo causado pelo enredo. Esse é só um entre tantos outros exemplos que ajudam a entender de que forma as “brincadeiras” carnavalescas são incômodas, uma vez que vociferam e reverberam nacionalmente, de forma bastante gráfica, críticas sociais e denúncias contundentes. E, além disso, esse exemplo mostra como, mesmo após constantes tentativas de repressão, o carnaval segue resistindo como a maior expressão cultural brasileira, construindo e disputando narrativas políticas e temas de interesse público.
Ocupar as ruas é um ato político. O lazer e a folia em espaço público, o exercício do direito à fruição e de produzir e consumir conteúdos culturais diversos também são. É ainda mais relevante o ato de externalizar e amplificar histórias, memórias e narrativas sobre grupos historicamente silenciados no País, como as populações negra, indígena e de tantas outras comunidades tradicionais. A manifestação política através de brincadeiras, danças, marchinhas, cantos e fantasias é das formas mais sublimes de expressão da aliança entre luta social, cultura e expressão estética. É a possibilidade que brasileiras e brasileiros encontram de, lutando por meio da arte, fazer ecoar uma voz esquecida no cotidiano.
A censura, a tentativa de criminalização, o constrangimento e o silenciamento não devem ser permitidos. Há que se proteger o direito expressado no Art. 215 da Constituição Federal também como um direito ao carnaval, uma vez que o entendemos como uma importante possibilidade de exercício da liberdade de expressão, dos direitos à manifestação, à reunião, à cultura; assim como dos direitos relacionados à cidade, ao espaço público e ao lazer de milhares de brasileiros, todos os anos.