Historicamente, durante o período eleitoral, o Brasil registra um aumento considerável nos casos de violações à liberdade de expressão. No ímpeto de se blindar contra críticas, candidatos a cargos públicos fazem uso de diferentes formas de intimidação para tentar inibir ou mesmo silenciar pessoas que publiquem conteúdos tidos como indesejáveis.
Nesse contexto, não são raros os registros de ameaças, agressões e mesmo tentativas de assassinatos contra comunicadores responsáveis por algum tipo de denúncia contra políticos. Em seu trabalho de monitorar as violações à liberdade de expressão, a ARTIGO 19 tem acompanhado seis casos de comunicadores que foram ameaçados de morte em decorrência da cobertura de candidatos às eleições municipais de 2016.
Outra forma bastante comum de violação é o uso abusivo de processos judiciais, cujo número de ocorrências costuma disparar durante as eleições. Pesquisa publicada recentemente pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) mostra que, em 2016, políticos e partidos processaram ao menos 99 veículos de mídia com o objetivo de remover informações da internet ou impedir sua divulgação. De acordo com a Abraji, o número já supera a quantidade de processos contra veículos em todas as eleições anteriores.
Neste ano, um dos casos mais emblemáticos que ilustram o fenômeno ocorreu em Patrocínio, cidade do interior de Minas Gerais. Lá, o jornalista José Maria Portilho Borges, conhecido apenas como Portilho, de 55 anos, cumpre prisão domiciliar depois de ter passado um mês na cadeia e ter sido condenado duas vezes por matérias que publicou, em decisões judiciais que acarretam sérios prejuízos à liberdade de expressão.
Entenda o caso
A primeira decisão foi tomada no dia 16 de agosto deste ano pela juíza Ana Régia Santos Chagas, da 211ª Zona Eleitoral de Minas Gerais, que expediu mandado de prisão preventiva contra o jornalista por ter entendido que ele descumpriu uma ordem judicial que o obrigava a se “abster de veicular por qualquer meio de comunicação comentários, escritos ou quaisquer matérias que ofendam a honra objetiva e/ou subjetiva de quaisquer pessoas, órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública”.
A ordem é resultado de um processo judicial movido contra Portilho pelo Ministério Público Eleitoral, que acusa o jornalista de fazer propaganda eleitoral negativa antecipada por meio de seu site, o Portilho Online (www.portilhoonline.com.br). O veículo é bastante conhecido pelas frequentes publicações de matérias críticas a autoridades públicas da região, incluindo candidatos nas eleições desse ano.
Em função de sua atividade jornalística, Portilho é atualmente alvo de diversos processos judiciais, a maioria deles por “crimes contra a honra”, como são conhecidos os atos de calúnia, injúria e difamação. Ele também já recebeu várias ameaças de morte, razão pela qual figura entre as vítimas de graves violações à liberdade de expressão apresentadas no relatório “Violações à Liberdade de Expressão – 2015”, da ARTIGO 19.
No texto da decisão judicial que determinou a prisão de Portilho, a juíza argumenta que a série de publicações do jornalista direcionadas a políticos em meio à campanha eleitoral “acirra os ânimos, desperta paixões, incita animosidades, estimula a prática de atos violentos” e ainda “pode estimular os ofendidos e seus apoiadores a fazer uso dos mesmos expedientes ilícitos como forma de restabelecer a paridade de armas”.
No mesmo dia da expedição do mandado de prisão, Portilho foi encaminhado para a penitenciária Expedito de Faria Tavares, em Patrocínio. O jornalista havia ainda se candidatado ao cargo de vereador nas eleições municipais, mas teve seus direitos políticos suspensos pela Justiça.
Habeas corpus e novo mandado de prisão
No dia 31 de agosto, o ministro Henrique Neves da Silva, do Tribunal Superior Eleitoral, aceitou habeas corpus impetrado pela defesa do jornalista, que alegou, entre outros pontos, que “a prisão processual é exceção e não pode ser adotada como medida de antecipação da pena”, afirmando ainda que “não é possível decretar a prisão cautelar com base na mera possibilidade de o paciente, candidato a vereador, veicular mensagens ofensivas à honra de candidatos, conduta para a qual há medidas menos gravosas do que a sanção penal”, citando o direito de resposta como uma delas.
No entanto, Portilho já possuía um novo mandado de prisão expedido contra si, resultado da condenação em um processo movido em 2013 no qual é acusado pelo crime de difamação. Com isso, no dia 2 de setembro, o jornalista foi transferido para a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), localizada também em Patrocínio. O processo corre em segredo de Justiça.
Na sentença, a juíza Elisa Marco Antonio, do Juizado Especial Cível de Patrocínio, não admitiu que a pena fosse comutada para serviços comunitários, condenando o jornalista a seis meses de prisão em regime semiaberto. Como Patrocínio não possui um presídio para o cumprimento de penas em regime semiaberto, a defesa do jornalista alegou que Portilho deveria cumprir a pena em regime domiciliar, obtendo decisão favorável da Vara de Execução Penal de Patrocínio.
Desde o dia 16 de setembro, o jornalista cumpre pena em sua residência.
Decisões ferem a liberdade de expressão
Para a ARTIGO 19, ambas as decisões judiciais que determinaram a prisão de Portilho são excessivamente duras e desproporcionais em relação aos crimes dos quais o jornalista é acusado de ter cometido.
“Há diversos outros tipos de sanções mais adequadas de serem aplicadas em casos de condenação por ‘crimes contra a honra’ que não a privação da liberdade. A medida é demasiadamente dura e causa graves danos à liberdade de expressão, uma vez que passa a inibir outros jornalistas de exercerem a crítica de autoridades públicas, algo tão necessário em uma sociedade democrática, sobretudo em períodos eleitorais”, afirma Júlia Lima, oficial da ARTIGO 19 que acompanha o caso.
“Além do mais, a linha argumentativa que serve de base para as condenações é superficial, e não aponta se a intenção das matérias era causar dano ou levantar o debate na cidade, tampouco cita se houve de fato danos às pessoas que se disseram ofendidas ou se as matérias publicadas por Portilho possuíam fundamento”, acrescenta.
Outro aspecto que chama atenção no caso é o fato de as condenações ocorrerem durante a campanha eleitoral. “Historicamente, o período eleitoral implica em um aumento do número de violações contra comunicadores. E não se trata apenas de um aumento de processos judiciais, mas também de ameaças e até violência física”, explica Júlia.
É por entender que a sanção penal é prejudicial à liberdade de expressão que a ARTIGO 19 defende que os “crimes contra a honra” devam ser tipificados apenas no Código Civil, deixando de constar no Código Penal como acontece hoje. Trata-se de uma transformação necessária ao sistema jurídico brasileiro, no sentido de se adequar aos principais padrões internacionais sobre o direito à liberdade de expressão existentes hoje e para que casos como o de Portilho não voltem a ocorrer.
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