A ARTIGO 19 analisou detalhes do processo eleitoral do país vizinho e como eles podem contribuir com o debate sobre o sistema de votação brasileiro
Diante do contexto de crise democrática por que têm passado diversos países – incluindo o Brasil –, identificamos que debates sobre sistemas de votação são essenciais para contribuir com a defesa da democracia, da liberdade de expressão e dos direitos humanos. Processos eleitorais são um momento fundamental para a afirmação e consolidação da democracia e devem representar e respeitar o resultado da participação política e social nos destinos de um país. Eles também representam a afirmação da liberdade de expressão na forma das manifestações e escolhas políticas livres.
A ARTIGO 19 vem conduzindo estudos e atividades sobre sistemas eletrônicos de votação, visando à promoção de um debate público qualificado, sem tabus, que possa gerar antídotos contra campanhas de desinformação que atacam a integridade eleitoral, mas que também considere questionamentos, apontamentos e contribuições pertinentes para sua melhoria.
Para isso, é necessário que o tema seja pautado por informações técnicas, mas que incorpore uma abordagem holística, com evidências de diversos ramos do conhecimento e consideração de vários aspectos sócio-políticos e particularidades dos países e seus processos eleitorais.
Deste modo, a ARTIGO 19 Brasil e América do Sul preparou uma lista com perguntas e respostas que podem ajudar a compreender a complexidade da crise eleitoral e política que se passa na Venezuela – uma espécie de seção FAQ (do inglês, “perguntas frequentes”).
A integridade eleitoral não depende apenas da segurança do sistema de votação, mas também de outras condições sob as quais ocorre uma eleição. Uma tecnologia de votação extremamente segura é insuficiente para garantir eleições justas se não estiverem garantidas a liberdade de expressão, o direito de acesso à informação e o direito de protesto – liberdades que não têm sido respeitadas na Venezuela, seja antes, durante ou depois de a cidadania ter ido às urnas. Após o anúncio da vitória de Nicolás Maduro, pessoas foram mortas em protestos, além de centenas terem sido presas.
Para mais informações sobre o funcionamento de vários tipos de tecnologia e as principais discussões a respeito, consulte a publicação “Como cobrir criticamente a urna eletrônica sem alimentar teorias da conspiração”, produzida pela ARTIGO 19 e que ajudou a fundamentar as respostas elencadas abaixo.
Qual o contexto atual da crise política e eleitoral na Venezuela?
Até o final dos anos 1980, o país se orgulhava de ser a democracia mais duradoura da América do Sul, em uma época em que seus vizinhos passavam por ditaduras e golpes de estado. Mas, em um contexto de crise econômica e de descontentamento da população com as instituições democráticas, Hugo Chávez, que já havia tentado um golpe de estado em 1992, foi democraticamente eleito presidente, em 1998. Em 2002, novo golpe de estado tentou, sem sucesso, tirá-lo do poder. Portanto, a não observância de uma regra basilar da democracia – o respeito ao resultado eleitoral –está na origem da crise venezuelana.
Nos últimos anos, além de escaladas de tensões políticas por parte da oposição e de pressões internacionais contra Nicolás Maduro, o governo Venezuelano empreendeu diversas estratégias para corroer o regime democrático e concentrar poder, por meio do controle do Judiciário, do Legislativo e do Conselho Nacional Eleitoral (CNE, do espanhol Consejo Nacional Electoral). Também assediaram e restringiram comunicadores e jornalistas, além de reprimirem opositores. Essa gradativa escalada autoritária tem culminado em graves e preocupantes violações de direitos humanos verificadas na Venezuela após a eleição do último domingo, 28/7.
Qual a tecnologia de votação usada na Venezuela?
Desde 2004, o sistema eletrônico de votação usado na Venezuela, em todo território, é o Voter-Verified Paper Audit Trail (VVPAT), ou trilha de auditoria por voto verificado e registrado em papel, mais conhecido no Brasil como “voto impresso”.
O VVPAT é integrado a uma “urna eletrônica”, cuja arquitetura tecnológica é a mesma usada no Brasil. Ela é chamada de “sistema de votação com registro direto de votos”, ou Direct-Recording Electronic (DRE). O nome se refere ao fato de que as escolhas de cada eleitor são registradas diretamente na memória instalada em um computador. Com a utilização do VVPAT, essas escolhas também são impressas em um papel, o que permite verificar se coincidem com o voto composto eletronicamente. Essa cédula, então, é depositada em um receptáculo inviolável (as cajas de resguardo). No caso venezuelano, esse depósito é feito pelo próprio eleitor, diferentemente de outros modelos, onde não há contato manual.
Na arquitetura VVPAT, os votos em papel são usados como um meio independente de verificação do resultado produzido eletronicamente. Ou seja, os registros físicos são contados e usados como parâmetro para aferir se o resultado produzido eletronicamente está correto. As circunstâncias em que essa contagem é feita – e o número de votos em papel que devem ser apurados – varia de acordo com a legislação eleitoral de cada país. Na Venezuela, a previsão é que até 54% das urnas físicas podem passar por esse processo, denominado de “verificação cidadã”.
Por que contar votos em papel pode ser uma boa ideia?
A principal vantagem da arquitetura VVPAT – além da possibilidade de o eleitor verificar como seu voto foi registrado – é que ela é “independente de software”: um erro ou alteração indetectável no software não vai gerar um erro ou adulteração indetectável no resultado eleitoral gerado pelo sistema eletrônico. Afinal, um problema no código-fonte até pode passar despercebido, mas se isso gerar um resultado incorreto, este será detectável por meio da contagem dos votos impressos.
Como os programas de computador usados em sistemas de votação são muito complexos, encontrar erros ou adulterações em seus códigos-fonte é considerado uma tarefa muito exigente e extremamente cara. Assim, a partir dessa premissa, se não se pode confiar integralmente no software, especialistas e organizações internacionais recomendam que sistemas eletrônicos de votação sejam independentes de software.
Isso quer dizer que sistemas sem independência de software, como o brasileiro, são inseguros?
Não. A verificação da validade dos resultados produzidos eletronicamente pode ser perseguida por outra abordagem: a inspeção do próprio software e de seu correto funcionamento, já que não existe um segundo conjunto autônomo de informações com o qual o resultado gerado eletronicamente possa ser comparado.
É verdade que essa empreitada não é simples, conforme afirmado na resposta anterior. Mas é preciso considerar que o conceito de independência de software foi proposto há quase vinte anos. No caso brasileiro, a Justiça Eleitoral vem oferecendo novos mecanismos de fiscalização e auditoria, que se complementam mutuamente. Cada um foi concebido para abordar aspectos específicos do sistema. Em conjunto, tais procedimentos buscam uma blindagem completa, e boa parte deles conta com a participação de instituições independentes que fiscalizam as operações e atividades empreendidas pela Justiça Eleitoral, as chamadas “entidades fiscalizadoras”.
O presidente Nicolás Maduro afirmou que o sistema brasileiro não é auditável, ao contrário do venezuelano. A afirmação pode ser contestada segundo o que entendemos por auditoria e compreendendo que há várias formas de verificar a integridade de um processo de votação.
Em um sentido forte, “auditar” está relacionado à conferência da correção de um resultado por meio de um conjunto de informações independentes do sistema que gerou aquele resultado. Em uma comparação grosseira, seria como refazer “à mão” o resultado gerado por uma calculadora. Nesse sentido, então, sistemas DRE, como o brasileiro, não seriam auditáveis, ao contrário de arquiteturas VVPAT.
No entanto, outro sentido de “auditoria” se refere a procedimentos de inspeção e fiscalização do próprio sistema que gerou o resultado, para verificar seu correto funcionamento. Como dito em resposta anterior, essa é a abordagem adotada pela Justiça Eleitoral no Brasil.
Confira mais informações sobre o sistema eletrônico brasileiro nas páginas 9 e 10 da publicação da ARTIGO 19.
Por serem independentes de software, sistemas com “voto impresso” são necessariamente seguros?
Não. A arquitetura tecnológica é apenas um aspecto de sistemas de votação e, sozinha, não é suficiente para gerar integridade eleitoral. O exemplo venezuelano, conforme veremos, é ilustrativo para demonstrar esse ponto. O argumento segundo o qual o “voto impresso” seria solução para dúvidas e questionamentos ao sistema eletrônico de votação brasileiro é falacioso e não compreende a complexidade das soluções e mecanismos necessários para um processo eleitoral saudável e transparente, como vimos no caso da Venezuela.
Se o sistema venezuelano é independente de software e, portanto, seus resultados podem ser auditados, onde está o problema?
A integridade de processos eleitorais depende, sim, da segurança de seu sistema eletrônico de votação. Mas isso não é suficiente para que as eleições, como um todo, sejam íntegras. É preciso considerar que sistemas de votação não são uma ilha. Ao contrário, são resultado do meio no qual estão inseridos e com ele interagem.
Em 2016 especialistas independentes afirmaram que, àquela época, o sistema eletrônico de votação da Venezuela, isoladamente considerado, era sofisticado e cumpria os principais requisitos de segurança. No entanto, também disseram que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE, do espanhol Consejo Nacional Electoral) era pouco transparente e não tinha independência. Por isso, o órgão não divulgaria os resultados sem consultar previamente o governo, o que gerava atrasos injustificados.
Esse é um dos principais pontos que têm gerado incertezas nas eleições venezuelanas deste ano. Os resultados foram divulgados em uma coletiva de imprensa, seis horas depois do encerramento da votação e sem a apresentação de números desagregados – ou seja, a quantidade de votos que os candidatos receberam em cada seção de votação, informações essas que são impressas em atas.[
No Brasil, esse tipo de documento é chamado de “boletim de urna”, que é impresso pela urna imediatamente após o encerramento da votação, em algumas vias, que são disponibilizadas ao público. As mesmas informações que constam dos boletins são enviadas eletronicamente ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde é feita a totalização.
Além disso, cada boletim de urna tem um QR Code, que permite verificar a autenticidade do documento. Esse código também pode ser lido por aplicativos de celular, capturando os resultados diretamente para o aparelho, sem necessidade de digitação. Então, qualquer instituição pode fazer suas totalizações, com dados que já foram tornados públicos. É uma gigantesca conta de somar, mas a matemática envolvida não é complexa. Para conferir ainda mais transparência a essa etapa do processo eleitoral, o TSE também disponibiliza acesso aos boletins, em seu portal, logo após o encerramento da votação.
Qual a importância da divulgação das atas (boletins de urna)?
Boletins de urna são documentos que contêm a informação sobre o número de votos que cada candidato recebeu na respectiva urna. É a partir deles que é feita a totalização, que consiste na soma dos dados de todos os boletins, à qual se aplicam as regras eleitorais vigentes (como a incidência do quociente eleitoral, no caso dos cargos proporcionais), gerando assim os resultados. Portanto, a publicidade desses documentos permite verificar se os números oficiais coincidem com a soma de todos os boletins de urna.
Por exemplo, em 1982, na eleição para governador do Rio de Janeiro, totalizações independentes detectaram que os números oficiais, gerados por uma empresa terceirizada chamada Proconsult, estavam errados.
Portanto, identificar erros ou adulterações na totalização é uma tarefa relativamente simples, ao menos em termos matemáticos – uma fraude nessa etapa do processo eleitoral, então, pode ser considerada grosseira ou ingênua. Nesse sentido, é possível considerar a hipótese de que as atas das eleições venezuelanas não foram divulgadas porque isso revelaria a vitória da oposição. Por outro lado, também é possível afirmar que a existência do voto impresso, em tese, dificulta a tentativa de manipulação do software do sistema eletrônico.
Divulgar boletins de urna significa que os resultados gerados por um sistema eletrônico são verificáveis?
Não exatamente. A “contagem” de votos em uma eleição é feita em duas etapas. Primeiro, na apuração, são contados os votos registrados em cada urna. Essa contagem é registrada nas atas ou boletins, que contêm o total de votos, por urna, que cada candidato recebeu. Em seguida, faz-se a totalização, que é o resultado gerado pela agregação de todos os boletins. Portanto, quando eles são tornados públicos, a totalização é que é passível de verificação, e não a apuração.
Essa confusão entre os conceitos de totalização e apuração pode gerar algumas conclusões imprecisas. Por exemplo, após Maduro ter criticado o sistema brasileiro, o TSE afirmou que “é falso que urna eletrônica não permite recontagem de votos” e que o boletim de urna é “totalmente auditável”, dando a entender que é possível verificar, de maneira independente do sistema, as informações que constam de cada boletim de urna.
Em quanto tempo, na Venezuela, os boletins de urna costumam ser divulgados?
Segundo um artigo escrito por especialistas independentes e publicado em 2016, a divulgação desses documentos no portal do CNE costuma demorar alguns dias. Portanto, afirmações mais categóricas sobre a demora do CNE precisariam considerar em quanto tempo, historicamente, essa divulgação é feita.
Mas é importante destacar que a não divulgação dos boletins de urna pelo CNE não é o único problema. Processos eleitorais são mais abrangentes que sua tecnologia e sistema de votação. Incluem, por exemplo, etapas como registro de eleitores, habilitação de candidatos e definição das circunscrições eleitorais. Além disso, uma disputa justa depende de um ambiente em que a liberdade de expressão, o direito de acesso à informação e o direito de protestar estejam assegurados.
Na Venezuela, o registro de eleitores foi obstaculizado, principalmente o de cidadãos que moram no exterior. Candidaturas da oposição foram indeferidas e o processo eleitoral ocorreu em um ambiente de restrição de liberdades da sociedade civil, da mídia e de partidos e políticos de oposição.