ARTIGO 19 se reúne com ANPD para discutir aplicação indevida da LGPD em pedidos de acesso à informação via LAI

A ARTIGO 19, como integrante do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas e da Coalizão Direitos na Rede (CDR), reuniu-se com a Autoridade Nacional de Proteção de Dados no dia 23/08 para discutir e propor soluções para os casos recorrentes de negativas indevidas de pedidos de acesso a informações públicas por parte do Estado, bem como de retirada de dados de interesse público dos canais de transparência ativa, fundamentadas na má aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). 

A realização desse diálogo com a ANPD, promovido por importantes coalizões nacionais em defesa da transparência pública e dos direitos digitais, buscou reforçar o entendimento de especialistas desses dois campos, também compartilhado pela Controladoria-Geral da União (CGU), acerca da complementaridade e necessidade de harmonização entre Lei de Acesso à Informação (LAI) e LGPD. As organizações presentes questionaram como a ANPD vem tratando os conflitos decorrentes da má operacionização da LGPD, colocando-se também à disposição para colaborar por meio de diagnósticos e subsídios técnicos para elaboração de medidas para as problemáticas apontadas. 

As questões e recomendações apresentadas durante a reunião foram sistematizadas em três notas técnicas, convergentes e complementares entre si, e encaminhadas à ANPD ao final do encontro. Os documentos foram elaborados pela ARTIGO 19, pelo Fórum de Direito de Acesso à Informações Públicas e pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) com apoio da CDR. Dentre os problemas relatados, destacam-se a aplicação automática da LGPD para negativas de acesso a documentos públicos que possam conter dados pessoais; a utilização indevida da LGPD para negativas de acesso a informações sobre agentes públicos no exercício de suas funções; exigência de cadastro prévio para acesso a dados públicos em sites da administração pública; remoções de bases de dados de portais da transparência ativa sem as devidas considerações ao interesse público envolvido e sem consulta prévia, tais como os microdados educacionais do ENEM/INEP e do Cadastro Ambiental Rural; entre outros pontos. Como possíveis saídas, as organizações sugeriram a elaboração de guias e enunciados, a realização de capacitação para servidores, entre outras medidas que, preferencialmente, dispensem alterações na LGPD ou na LAI.

Aprovada em 2018 e em vigor desde 2020, a LGPD regulamenta o tratamento desses dados, a fim de proteger o direito à privacidade, preservar a autodeterminação informativa, a liberdade de expressão, entre outros direitos (1) . É importante ressaltar que o objetivo da nova legislação é disciplinar o tramentamento dos dados pessoais, e não proibi-lo. Para isso, ela dispõe como parâmetros de um conjunto de princípios e hipóteses autorizativas, que devem ser seguidos tanto por agentes públicos como privados. 

Contudo, desde que a LGPD entrou em vigor, muitos órgãos e servidores públicos vêm negando acesso a informações de interesse público, usando como fundamento a presença de dados pessoais nos documentos solicitados (2). Seja por despreparo, desconhecimento sobre como fazer a correta interpretação da LGPD ou por má fé, tais irregularidades têm como resultado um flagrante desrespeito ao cumprimento da  LAI, que tem como diretrizes a divulgação de informações de interesse público e a observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção.

É importante ressaltar que o contexto em que a LGPD passou a ser aplicada no país coincidiu com relevantes mudanças políticas, em especial, a eleição presidencial de Jair Bolsonaro, em 2018, marcado por forte inclinação autoritária, patente difusor de desinformação e que sistematicamente promoveu ataques à transparência pública (3). Nas esferas subnacionais, a eleição de diversos correligionários do bolsonarismo para cargos da administração pública e do legislativo fortaleceu e incentivou a difusão de práticas semelhantes em todo o país. 

A recente reviravolta eleitoral, ocorrida em 2022, devolveu à presidência Luiz Inácio Lula da Silva, alterando novamente o equilíbrio entre as forças políticas e proporcionando a reabertura do diálogo entre o governo e a sociedade civil, severamente prejudicado por seu antecessor. Vale lembrar que, em gestões anteriores, o Partido dos Trabalhadores (PT) foi o responsável pela criação da Controladoria-Geral da União e pela aprovação da LAI. 

Alinhado ao discurso defendido já durante a campanha presidencial e como resultado das auditorias feitas pelos grupos de transição sobre os sigilos impostos na gestão passada, o governo Lula tomou no início do novo mandato algumas medidas em prol da retomada e fortalecimento da cultura da transparência na coisa pública. Destaca-se, entre elas, a publicação de 12 enunciados (4), formalizando o entendimento da CGU sobre que dados e informações são de caráter público, e que, portanto, não devem ter acesso negado. A medida, embora tenha uma contribuição importante, tem se mostrado insuficiente, uma vez que, devido a autonomia federativa, tem caráter obrigatório apenas para órgãos da Admistração Pública Federal, não o sendo para órgãos da esfera subnacional, onde a maior parte do gargalo se concentra.

Além disso, está em vigor um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) entre CGU e ANPD (5), assinado em maio de 2023. Entre os objetivos do Acordo, estão inclusas medidas que visem garantir a devida harmonização entre a LAI e LGPD. Durante a presente reunião, representantes da Autoridade presentes na Reunião tiveram falas convergentes com análises colocadas pela sociedade civil, reconhecendo a má utilização da LGPD por órgãos do Estado para imposições indevidas de sigilo. Sinalizaram, deste modo, a intenção de realizar, no âmbito do Acordo de Cooperação, capacitações e eventos voltados para servidores, a elaboração de enunciados em conjunto com a CGU, a possibilidade de elaboração ou reedição de Guias, entre outras medidas que visem harmonizar ambas legislações, assegurando o direito dos titulares e as ferramentas de controle social. 

A Autoridade ponderou, contudo, as limitações do órgão decorrente de sua estrutura enxuta em termos de recursos e a existência de outros pontos prioritários em sua agenda regulatória. De todo modo, firmou o compromisso em analisar os documentos encaminhados e a possibilidade de utilizá-los para subsídios técnicos. A reunião foi concluída com o compromisso de realização de um segundo encontro, previsto para novembro, entre a instituição e as demais organizações presentes para compartilhamento das devolutivas do órgão em torno das recomendações apresentadas pela sociedade civil, das medidas tomadas pela Autoridade e alinhamento dos próximos passos.

A ANPD foi representada pelos coordenadores e membros das equipes da Coordenação-Geral de Normatização e da Coordenação de Relações Institucionais e Internacionais. Pela sociedade civil, além da ARTIGO 19, também estiveram presentes representantes da Fiquem Sabendo, Transparência Brasil, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), Open Knowledge Brasil (OKBR), Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa (DPBR), Instituto Nupef, Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN).

 

(Crédito da imagem: Markus Spiske/Unsplash)

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm

2. Para maiores informações sobre negativas indevidas de acesso com base na LGPD, ver FIQUEM SABENDO, INSPER (2022), disponível em: https://br.boell.org/sites/default/files/2022-05/Relat%C3%B3rio%20LAI%20x%20LGPD%20v.2.0.pdf 

3. Para maiores informações sobre evidências da prática recorrente de declarações falsas do ex-presidente Bolsonaro e integrantes de seu governo, confira o relatório Infodemia (ARTIGO 19, 2021), disponível em: https://artigo19.org/2021/05/17/artigo-19-lanca-relatorio-sobre-infodemia-e-direito-de-acesso-a-informacao-na-pandemia-de-covid-19/ Ou levantamento da agência de checagem de fatos Aos Fatos, disponível em. https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/ 

4. Para maiores informações sobre os enunciados, ver: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-normativa-cgu-n-71-de-10-de-abril-de-2023-477406468

5. https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-assina-acordo-de-cooperacao-tecnica-com-a-cgu

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