Nota sobre o documento do Partido Liberal acerca de uma suposta auditoria do sistema eletrônico de votação

A ARTIGO 19 vem trabalhando com o tema das tecnologias do voto, urnas eletrônicas e sistema eleitoral brasileiro e alertando para justificativas e subterfúgios utilizados por agentes políticos para minar a credibilidade do ecossistema eleitoral brasileiro, romper o pacto social em torno das eleições e atentar contra a democracia por meio da disseminação de informações falaciosas, incompletas, mal-intencionadas e distorcidas.

Com uma nítida intenção de perturbar a normalidade do processo eleitoral brasileiro, o Partido Liberal, por meio de seu vice-presidente, Capitão Augusto, divulgou nesta quarta-feira (28/9) um documento de 2 páginas intitulado “Resultados da Auditoria de Conformidade no TSE”. A mesma foi amplificada em redes sociais por outros membros do partido, como a candidata a deputada federal por São Paulo, Carla Zambelli, 

Ao contrário do que declaram esses agentes, levantar e divulgar suspeitas de forma leviana e rasa sobre a integridade do sistema eletrônico de votação em períodos cruciais para a manutenção e fortalecimento da democracia é uma forma de atentar contra o estado democrático de direito, a legislação eleitoral vigente e a normalidade institucional. Os procedimentos de segurança, auditoria, verificação, esclarecimento ou contestação do sistema eletrônico de votação têm regras a serem obedecidas, protocolos a serem cumpridos e rituais estabelecidos e consolidados pelo arcabouço normativo do tema.

O documento divulgado contém informações vagas, impossíveis de serem conferidas sem um processo transparente, ausência da metodologia utilizada para as análises e tomadas de conclusão, não permite resposta adequada por parte das instituições mencionadas e não especifica os supostos problemas que levanta, tornando impossível a verificação, a poucos dias das eleições, das informações contidas nele. Insinuações de falhas técnicas e administrativas não devem ser feitas de maneira leviana, sem o devido processo legal e institucional ou sem atenção às consequências que podem gerar num momento delicado da vida política brasileira. 

A maneira pela qual o documento aparece para a sociedade demonstram que sua intenção não é propor efetivamente melhorias ao sistema eletrônico de votação. Fosse esse o objetivo, a suposta auditoria deveria ter sido feita em momento adequado, quando fosse possível avaliar a pertinência e concretude das alegações.

Os procedimentos de fiscalização e auditoria do sistema eletrônico de votação são regidos por normas eleitorais, como a Resolução 23.673/2021, do TSE. A inspeção do código fonte, citada pelo documento, é oferecida às entidades fiscalizadoras, como partidos políticos, desde outubro do ano passado. 

Além disso, a notícia de que o PL pretendia auditar o sistema foi dada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, no começo de maio. Na ocasião, ele sugeriu a conclusão a que a auditoria supostamente chegaria: a impossibilidade de “auditar o processo”. Essa é, de fato, uma das críticas feitas ao modelo brasileiro, que não contaria com a “independência de software”. Ou seja, qualquer checagem posterior do correto funcionamento do sistema dependeria unicamente do programa instalado na urna. De maneira enganosa, aponta-se que esse programa poderia camuflar uma fraude impossível de ser detectada.

É importante frisar que as camadas de segurança do sistema eletrônico brasileiro e suas etapas de fiscalização e auditoria foram planejadas para atuarem de maneira complementar. Juntas, elas constituem um poderoso escudo contra erros e tentativas de manipulação. Mesmo que ocorra algum problema em uma dessas etapas, a integridade do sistema não será atingida, pois as demais camadas de segurança continuam fazendo a blindagem. É possível fazer uma série de auditorias em diferentes etapas do processo: verificar se o programa efetivamente usado nas urnas é o mesmo lacrado pelo Tribunal Superior Eleitoral, comprovar a ausência de votos antes de iniciada a votação, analisar os arquivos digitais produzidos pelas urnas eletrônicas e aferir os logs das urnas (que são arquivos de registro cronológico de eventos de todas as operações realizadas nos equipamentos).

Os modelos e sistemas de votação, assim, devem ter a melhor resposta aos desafios geográficos, democráticos, culturais, políticos e sociais do local onde são implantados. Dessa forma, não há padrão ou modelo integralmente replicável que necessariamente atenda realidades diferentes. Por isso, o trabalho, experiência e sucesso do modelo brasileiro não pode ou deve ser negado, sob pena de grave ameaça à democracia.

A falta de transparência do Partido Liberal em torno da suposta auditoria também chama a atenção. A entidade privada responsável seria o Instituto Voto Legal (IVL), capitaneado pelo engenheiro Carlos Rocha e fundado no fim de 2021. O PL tentou cadastrar o IVL no TSE para que a auditoria pudesse ser feita, mas o próprio partido teria desistido da empreitada.

Carlos Rocha participou do projeto de criação da urna eletrônica, nos anos 1990. Por isso, chegou a pleitear junto ao INPI a patente de invenção do equipamento, o que acabou sendo negado pelo órgão. Na rede social LinkedIn, ao menos desde junho de 2021, ele vem publicando artigos com questionamentos à segurança do sistema brasileiro – outro sinal de que a suposta auditoria contratada pelo PL não teria sido feita de forma imparcial.  

Desse modo, nos preocupa a forma e a intenção através da qual um partido político levanta questões que não podem ser debatidas, verificadas e analisadas da maneira adequada. As questões contidas no breve documento divulgado não têm, necessariamente, conexão direta com a segurança das urnas eletrônicas ou com o processo de totalização de votos. Parte do documento menciona superficialmente questões de “segurança da informação” que indicam mais uma questão administrativa do que comprovação de falhas técnicas. Há insinuações em relação aos processos de auditoria, controle do código-fonte dos programas da urna e procedimentos garantidores da integridade do ciclo de votação que são de amplo conhecimento da comunidade técnica, científica e acadêmica. Tais temas vêm sendo debatidos de maneira adequada em conjunto com a autoridade eleitoral brasileira e ampla participação de camadas interessadas da sociedade.

Não é ilegítimo, da parte de um partido político, buscar o aprimoramento de qualquer sistema eletrônico e informático, requerer maior transparência das instituições do Estado ou externalizar para a sociedade resultados de estudos e pesquisas que sejam relevantes para o país. No entanto, desde 2021, um movimento coordenado para atacar o sistema eleitoral e suas instituições vem tentando se utilizar de fórmulas conhecidas para disseminar desinformação sobre a infraestrutura utilizada nas eleições. Longe de operar a partir de processos legítimos, transparentes e de boa-fé para com o fortalecimento dos laços de confiança na democracia, utilizam-se de estratégias desinformativas para gerar instabilidade e mobilizar parcela da sociedade para ataques ao estado democrático de direito.

Reafirmamos que, em 26 anos de uso das urnas eletrônicas, jamais ficou provado que houve fraudes nos resultados das eleições. Os estudos que de boa-fé apontam melhorias ao sistema vêm sendo continuamente considerados e aplicados no melhoramento do sistema e há um crescente processo de abertura e participação de diversos atores no desenvolvimento e manutenção dos procedimentos seguros e confiáveis da Justiça Eleitoral.

Assim, é lamentável que, com clara intenção de perturbar a normalidade das eleições e confundir a opinião pública, o partido do presidente da República se utilize de um tema sério, relevante e central para a democracia como forma de inflamar uma base política contra as eleições e a confiança na democracia brasileira. Reafirmamos nosso apoio à democracia e às instituições legalmente constituídas para assegurá-la. As eleições são um momento fundamental para sua consolidação. 

Incentivamos todas as pessoas a comparecerem às urnas e manifestarem livremente e de maneira informada sua decisão sobre quem são os melhores candidatos a lhes representarem, confiando no sistema e nas instituições nascidas da Constituição de 1988.

 

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