Ao mesmo tempo em que entende como relevante a necessidade de aprimoramento, confiabilidade e transparência dos processos de votação vigentes no Brasil, a organização reconhece a complexidade do tema e a necessidade de planejamento e debate sobre a matéria. Assim, se posiciona contra a PEC 135/2019, pelo caráter antidemocrático que circunda a iniciativa e pelos riscos que seriam trazidos pela forma da implementação das mudanças e ritos por ela indicadas.
As urnas eletrônicas, utilizadas no Brasil desde 1996, representaram um grande avanço para a democracia brasileira. O amplo histórico de fraudes eleitorais, quando da utilização de votação manual de cédulas em papel, deixou marcas profundas na cultura política do país. Assim, a diminuição da intervenção humana neste processo foi um passo importante para o fortalecimento da democracia e realização de pleitos mais seguros, confiáveis e íntegros, contribuindo para a construção de uma percepção em geral positiva por parte da opinião pública. Desde a implementação das urnas eletrônicas, não há evidência ou comprovação de que tenha havido fraude no sistema eletrônico de modo a alterar o resultado advindo da expressão popular pelo voto.
Em paralelo a isso, dos 17 países que hoje fazem uso de urnas eletrônicas no mundo, apenas Brasil, Bangladesh e Butão não adotam o registro independente do voto, a ser utilizado para uma auditoria cruzada. Entendemos que a sua adoção pode ser um passo importante para a garantia de uma etapa a mais de segurança e auditoria, fortalecendo a confiabilidade no processo. Diversas tecnologias no campo das urnas eletrônicas contam com sistemas independentes de software 1. Essa independência, que pode ser materializada a partir do registro físico do voto, funciona como um recurso importante no sentido de oferecer confiança ao eleitor e promover mecanismos de verificação em caso de falseabilidade ou interferências externas no sistema eletrônico 2.
Todavia, a implementação de um registro independente do voto gera diversos desafios que não podem ser resolvidos em um curto espaço de tempo e em meio a crises políticas que ameaçam a democracia. Os desafios compreendem a adequação financeira e logística para a implementação; a realização de licitação para a compra de novos equipamentos; a realização de testes nestes equipamentos; a custódia das urnas com os registros físicos; o risco pela maior intervenção humana no processo; o treinamento de pessoal técnico e operacional; e o estabelecimento de regras de auditoria de risco limitado, que determinariam a porcentagem de registros físicos que seriam contados para a comparação com o registro eletrônico 3, que serviriam para reduzir a judicialização.
A PEC 135/2019 e as demandas atuais pelo “voto impresso e auditável”, além de se alinharem a uma narrativa de fraude e tentativa de deslegitimação do sistema eleitoral brasileiro, vem em momento extremamente perigoso para a democracia brasileira. A postura de seus defensores não está relacionada a uma real preocupação com a melhoria do sistema eleitoral brasileiro, mas sim com a identificação de subterfúgios para minar a credibilidade do processo eleitoral, desacreditar o trabalho das instituições e perturbar a realização das eleições de 2022, buscando invalidá-la.
A PEC proposta está sendo discutida no Congresso Nacional às pressas e sem um compromisso real com uma comunicação e debate de alto nível sobre suas características e eventuais impactos para a democracia brasileira. Não obstante o TSE já ter se pronunciado acerca da impossibilidade da implementação do novo sistema para as eleições de 2022 e diversos especialistas já terem afirmado a necessidade de vários anos para que isso ocorra de forma segura, os defensores deste projeto ainda afirmam, de maneira preocupante, que somente aceitarão os resultados das eleições se elas contarem com “voto impresso e auditável”, o que reforça os indícios que demonstram o caráter antidemocrático da iniciativa.
A ARTIGO 19 ressalta a necessidade de um debate e aprimoramento contínuo da tecnologia utilizada no sistema eleitoral, alinhada com o que há de mais avançado e com as especificidades sócio-políticas brasileiras. Contudo, repudia fortemente discursos de caráter golpista forjados de tecnicidade. Os trabalhos sérios de inúmeros pesquisadores que se debruçam sobre o tema não merecem ser equalizados com proposições legislativas e bravatas políticas que não buscam outra finalidade senão a de perturbar o andamento do processo eleitoral.
O debate sobre a tecnologia não pode ser apartado dos aspectos políticos e sociais, motivo pelo qual, ao passo em que defendemos a necessidade de um amplo e transparente debate para a elaboração de um planejamento de longo prazo, democrático e popular de aprimoramento do sistema atual, refutamos veementemente o conteúdo simplista e a forma como a PEC 135/2019 está sendo encaminhada hoje no Brasil.
Leia a nota técnica com o posicionamento expandido aqui
Notas de rodapé
1 Segundo Rivest e Wack, um sistema pode ser considerado independente de software, se, “após a consideração de seu software e hardware, permitir o uso de quaisquer procedimentos eleitorais necessários para determinar se o resultado da eleição é preciso, sem a necessidade de confiar que o software do sistema de votação está correto. Os procedimentos eleitorais podem incluir aqueles realizados pelos eleitores no decurso das votações ou, no caso de leitura óptica e VVPAT, podem incluir procedimentos oficiais eleitorais, como auditorias pós-eleitorais.” (RIVEST, Ronald L.; WACK, John P. On the notion of ‘software independence’ in voting systems. Philosophical Transactions Of The Royal Society A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences, [s.l.], v. 366, n. 1881, p.3759-3767, 6 ago. 2008. The Royal Society. Disponível em: https://people.csail.mit.edu/rivest/RivestWack-OnTheNotionOfSoftwareIndependenceInVotingSystems.pdf. Acesso em: em: 07 jun. 2021
2 Nesse sentido, deve-se destacar que i) o desenvolvimento de códigos de software de forma correta e segura para eleições é uma tarefa difícil. Sua complexidade, que geralmente abrange milhões de linhas de código, faz com a existência de erros de digitação ou de instruções seja bastante provável devido aos próprios limites da capacidade humana; ii) sistemas eletrônicos estão sempre vulneráveis a ataques, tanto ao software quanto ao hardware.
Exemplo disso seria a possibilidade de as urnas serem programadas para mostrar um resultado ao eleitor enquanto registra um resultado diferente na tabulação. A recontagem neste sistema utilizaria o mesmo software defeituoso para reclassificar os mesmos resultados, porque os registros primários da votação são armazenados na memória do computador; iii) mesmo que o software seja extensamente testado antes do pleito, devido à sua complexidade, isso não quer dizer que todas as vulnerabilidades foram encontradas. Ademais, não há garantia de que ele seja exatamente o mesmo que está presente nas urnas no dia das eleições.
3 A Auditoria de Risco Limitado é utilizada em diversos países para a comparação entre o resultado produzido pelo registro eletrônico e o registro físico dos votos. Este é um método interessante, pois possibilita que não seja necessária a contagem manual de todos os votos para se ter certeza do resultado de uma eleição, o que diminui a intervenção humana e o gasto de tempo e dinheiro. O número de votos que precisam ser contados manualmente depende da margem de vitória no pleito que está sendo auditado. Cf. RISK-LIMITING AUDITS. Disponível em: https://risklimitingaudits.org/. Acesso em: 15 jun. 2021 e LOVATO, Jerome. Risk-Limiting Audits – Practical Application. [s.l.]: U.S. Election Assistance Commission, 2018. Disponível em: https://www.eac.gov/sites/default/files/eac_assets/1/6/Risk-Limiting_Audits_-_Practical_Application_Jerome_Lovat o.pdf. Acesso em: 25 maio 202
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