Momento histórico no continente: Chile elege constituintes e amplia a participação popular com paridade de gênero

Nos últimos dias 15 e 16 de maio, a população chilena viveu um momento histórico de participação política: as eleições dos 155 cidadãos e cidadãs que irão elaborar a nova Constituinte do país. Todas as constituições anteriores e a atual – de 1980 e aprovada durante a ditadura militar de Pinochet – foram escritas e aprovadas pelas elites. Essa foi a primeira vez que se garantiu um processo amplo de participação popular e com garantia de paridade de gênero. As mulheres terão 50% das vagas, um marco global histórico.

Uma nova Constituição democrática foi a principal demanda dos protestos massivos que tomaram as ruas chilenas em 2019 e foram fortemente reprimidos pelas forças estatais [1]. Diante  da pressão popular e por meio de um grande acordo nacional que legitimou a reivindicação histórica, se iniciou o processo constituinte que foi aprovado em plebiscito popular em outubro de 2020.

O resultado das eleições, onde também foram eleitos governadores, prefeitos e vereadores,  mostrou o declínio das forças políticas tradicionais que produziram uma aliança com grupos conservadores e de extrema direita. Também evidenciou a força das lideranças independentes, que vêm se construindo a partir dos protestos sociais massivos que tomam as ruas chilenas desde 2019. A base governista não atingiu um terço das vagas disponíveis e ficou com 37 representantes na Assembleia Constituinte. Já a esquerda e a centro-esquerda somaram  50 eleitos (as) e os independentes – na sua maioria da esquerda – acumulam 47 representações [2]. Uma vez contabilizados os votos, a Convenção terá 9 meses para apresentar um novo texto constitucional, que poderá ser ampliado por 3 meses. Espera-se que na segunda metade de 2022 se realize o plebiscito nacional para aprovação do novo texto. [3]

O processo participativo estabeleceu a cota de 17 representantes para os povos indígenas. Entre as lideranças indígenas eleitas está a líder indígena mapuche Francisca Linconao. Francisca foi alvo de intensos processos de criminalização, tendo sido inclusive privada de sua liberdade, mas foi absolvida e agora integrará a Convenção Constituinte. Outro registro histórico  é que 77 vagas foram ocupadas por mulheres. Das representantes eleitas, 21 estão comprometidas com as propostas feministas para o processo constituinte. [5]

A participação da população nas eleições foi desafiada pela pandemia de COVID-19. Fomentar a ida às urnas e exigir do Estado medidas sanitárias “pela saúde da democracia” [4] foi um dos chamados que organizações e movimentos feministas fizeram nas semanas que antecederam as eleições. Agora, como difundido pela campanha #ParticipamosTodxs, resta que os candidatos eleitos garantam maior participação cidadã em todo o processo constituinte.

O direito à participação é um direito autônomo garantido no artigo 25 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos [6] e no artigo 23 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos [7]. É relacionado aos contextos eleitorais ou à participação indireta por meio da eleição de representantes, assim como à participação direta nos assuntos de interesse público. Segundo os padrões internacionais de direitos humanos, “é a essência do governo democrático baseado no consentimento do povo” [8]. Assim, a garantia do direito de participação está estreitamente vinculada também ao exercício das liberdades de expressão, reunião e associação e dos direitos econômicos, sociais e culturais. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o direito à participação deve estar diretamente relacionado à garantia dos direitos das populações ou grupos em situação de discriminação histórica, porque a participação social não pode ser confundida com a participação das maiorias. [9]

Segundo Clément Voule, Relator Especial sobre Liberdade de Reunião Pacífica e Liberdade de Associação da ONU, ainda que enfrentemos dificuldades para garantir o direito à participação no contexto da pandemia de COVID-19, “a democracia não pode ser adiada indefinidamente” e “à luz dessas circunstâncias desafiadoras, é ainda mais importante, conforme destacado a seguir, que a liberdade de expressão seja respeitada e que os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação online sejam plenamente garantidos. (…) os Estados devem tomar todas as medidas possíveis para garantir a realização oportuna das eleições. (…) Em todos os casos, a integridade dos processos eleitorais deve ser garantida”. [10]

A ARTIGO 19 parabeniza os esforços do Estado e do povo chileno para a proteção e promoção do direito à participação durante as eleições no último final de semana. Em um contexto regional de fortes restrições aos espaços cívicos, o exercício democrático que se consolidou no Chile evidencia a força das resistências populares e feministas e do exercício do direito de protesto pela população para a transformação social. Recordamos a todos os Estados da região que a pandemia de COVID-19 não pode ser instrumentalizada para a restrição arbitrária e para a violação das liberdades de expressão, associação e manifestação, bem como do direito de protesto e do direito de participação.

1 Ver Relatório da  Misión Internacional de Observación de Derechos Humanos en Chile realizada entre 6 e 11 de novembro de 2019. Disponível em   https://artigo19.org/2020/02/12/em-relatorio-final-missao-internacional-aponta-responsabilidade-do-estado-por-graves-violacoes-em-protestos-no-chile/
2 Ver: https://2021.decidechile.cl/#/ev/2021/ct/2021.N/
3 Ver https://www.gob.cl/procesoconstituyente/
4 http://www.humanas.cl/campana-cuidemos-la-democracia-cuida-tu-voto/
5 Conheça as iniciativas 𝗔𝗵𝗼𝗿𝗮 𝗡𝗼𝘀 𝗧𝗼𝗰𝗮 𝗣𝗮𝗿𝘁𝗶𝗰𝗶𝗽𝗮𝗿 e la 𝗥𝗲𝗱 𝗽𝗮𝗿𝗮 𝗹𝗮 𝗣𝗮𝗿𝘁𝗶𝗰𝗶𝗽𝗮𝗰𝗶𝗼́𝗻 em  https://www.redparalaparticipacion.cl/ e https://participamostodxs.ahoranostocaparticipar.cl/
6 Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:
A) de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;
B) de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e
C) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país
7 Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas:
A) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos;
B) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores;
C) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
8 Ver parágrafos 1 e 2 do Comentário Geral nº25 do Comitê de Direitos Humanos sobre o artigo 25 (Participação nos Negócios Públicos e o Direito ao Voto). Disponível em https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.7&Lang=en
Ver prelatório Políticas Públicas con Enfoque de Derechos Humanos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/PoliticasPublicasDDHH.pdf
10 States responses to Covid 19 threat should not halt freedoms of assembly and association” – UN expert on the rights to freedoms of peaceful assembly and of association, Mr. Clément Voule. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25788&LangID=E

Foto capa: Agence France-Presse

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