Projeto de Lei deve ser votado no Senado hoje. Falta de amplo diálogo sobre o texto a ser apreciado potencializa violações aos direitos digitais e fere as boas práticas da governança da Internet
O Senado Federal está previsto votar hoje (25/06) o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como o “PL das fake news” e identificado como Lei da Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Diante da ameaça de votação às pressas do projeto que apresenta graves riscos à liberdade de expressão em seu texto atual, a ARTIGO 19 vem a público manifestar pela não aprovação do PL sem que antes ele seja amplamente debatido com a participação da sociedade brasileira e atores cruciais para a governança da Internet, tal como ocorreu com matérias semelhantes e de tamanha relevância como o Marco Civil da Internet (MCI) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Originalmente uma proposta de Alessandro Vieira (Cidadania-SE), as inúmeras mudanças indicadas para o texto a cada semana inviabilizam um debate qualificado não só da sociedade civil organizada, acadêmicos e demais atores interessados, mas também um diálogo amplo com todos e todas que utilizam a Internet. Reconhece-se que é legítimo o interesse em combater a desinformação e as violações de direitos que podem decorrer desse fenômeno. No entanto, não é possível admitir que tais medidas ocorram associadas a graves riscos ao exercício da liberdade de expressão e a demais garantias que podem ser negativamente afetadas quando se pretende regulamentar ferramentas tecnológicas ligadas à informação e comunicação.
O combate às chamadas “fake news” implica também em contemplar e estudar possíveis restrições à liberdade de expressão. Organismos internacionais já se manifestaram no sentido de que restrições a esse direito na Internet só são aceitáveis quando observam os padrões internacionais sobre a matéria, que dispõem, entre outras coisas, que elas devem estar previstas pela lei, buscar uma finalidade legítima reconhecida pelo direito internacional e ser necessárias para alcançar essa finalidade. É fundamental que essa análise de adequação, proporcionalidade e necessidade – o chamado “teste tripartite” – seja realizada de maneira minuciosa, o que é inviabilizado quando um projeto de lei com tamanha relevância tramita com tantas dúvidas e inseguranças em relação a seu conteúdo.
É importante destacar também outras as recomendações internacionais sobre como os Estados devem abordar os problemas associados à desinformação, especialmente os levantados pelas relatorias especiais das Nações Unidas e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que enfatizam que a desinformação não deve ser tratada por meio de legislação específica que criminaliza ou limita expressões. Pelo contrário, é recomendado que os Estados adotem medidas abrangentes, focadas na transparência e na promoção da liberdade de imprensa como eixo central para a busca de soluções para o problema. Além disso, uma série de iniciativas baseadas em experiências internacionais reconhece perspectivas não legislativas como as mais apropriadas para abordar o fenômeno. Políticas públicas relacionadas à educação e à alfabetização digital poderiam, por exemplo, representar medidas mais efetivas. As mesmas autoridades internacionais se manifestam ainda no sentido de a cooperação de atores interessados – incluindo intermediários, mídia, sociedade civil e acadêmicos – é fundamental para o desenho desse tipo de iniciativa.
Diante desse cenário complexo, a ARTIGO 19 reitera o compromisso de pressionar o Senado Brasileiro para a retirada da pauta o atual PL 2630, para que uma lei dessas proporções e com esse potencial impacto não seja votada sem que haja um processo de consulta e participação efetivo que siga as boas práticas de governança da Internet no Brasil. Ao mesmo tempo, é necessário que haja mobilização para que se encaminhe a questão da desinformação estritamente de acordo com as obrigações às quais é submetido o Estado brasileiro pelos padrões internacionais e regionais de direitos humanos.
Sem debate amplo, o PL das fake news coloca em risco direitos já garantidos em um momento que o país enfrenta uma crise sanitária, política e social sem precedentes na nossa democracia recente, e apresenta o risco de modificar radicalmente, e de maneira negativa, a maneira pela qual os brasileiros utilizam a Internet.