A ideia de mito é abrangente e fluida: nasce como a história clássica de diferentes culturas, passa a ser aquilo que, apesar de difundido, foi superado pelos fatos, comprovadamente inverdade. E, na era da desinformação, o conceito é sequestrado, usado à revelia para desqualificar aquilo que cada um não quer acreditar, independente dos fatos. É apropriada ainda por ícones neo-fascistas que se alçam ao poder a partir do uso da imagem divina, onde ‘mito’ faz uma referência ideológica romantizada aos heróis representados em enredos alegóricos, que passam por provações para enfim, tornarem-se deuses imortais.
Cruza ainda a história brasileira, que é atravessada por inúmeros mitos raciais, como o “mito da democracia racial”. Através da afirmação de que há justiça racial em nosso país, esse mito apaga as pautas do movimento negro e reforça a ideia errônea de que o racismo é exercido apenas através de agressões pontuais diretas – quando os fatos mostram que é um problema estrutural e histórico.
“Nós estamos aqui para falar de pessoas negras que se destacaram, por que estamos reforçando aqui o mito da democracia racial. E é isso, pega um negrinho daqui e outro dali e mostra que é maravilhoso e continuamos como ‘Dantes no Quartel de Abrantes’”, Lélia Gonzalez
Incluem também os estereótipos sobre a figura dos pretos e pretas no imaginário social. No caso da mulher negra, historicamente, duas narrativas da branquitude se destacam: o mito da mulher negra raivosa e o mito da mulher negra guerreira. Ambos são invocados para desqualificar comportamentos quando eles incomodam. Se a mulher negra tem “resiliência”, se ela, em silêncio, sobreviveu, é considerada guerreira. Agora, se ela ousa falar, é raivosa. Deve ser rapidamente contida e é alvo de execução – física ou emocional.
“Se você ficar em silêncio sobre sua dor, eles irão te matar e dizer que você gostou”, Zora Neale Hurstonpic
As mulheres reunidas no encontro mostraram que não existe uma realidade da mulher negra. É preciso respeitar identidades, individuais e coletivas, e a diversidade de expressões que existem dentro delas. Porém, existem fatores político-sociais que estruturam possibilidades, caminhos e conquistas que são partilhadas. Esses fatores se apresentam para todas as mulheres negras e se potencializam, conforme as diferentes realidades e intersecções de cada uma.
“A mulher negra surda é triplamente excluída da conscientização política por que ela é mulher, por que ela é negra e por que ela é surda”, Patrícia Cardoso, intérprete de Libras no IFSP Pirituba, em fala durante a roda de conversa “Mulheres Negras de Expressão”
Essa questão atinge mulheres que produzem comunicação e permeiam relações com instituições, organizações da sociedade civil e empresas, que tendem a reproduzir lógicas racistas e pactos da branquitude, reforçando o racismo estrutural e institucional. É comum que mulheres negras sejam convocadas para contribuir enquanto “o recorte”, trazendo a “perspectiva negra” sobre determinados assuntos e ficando sempre sujeitas a ensinar “o que é ser negra”, quando devem ser valorizadas também pelos interesses e experiências que desenvolvem em seus trabalhos.
Outro fator importante que emergiu nas reflexões do Mulheres Negras de Expressão é a disputa de narrativas, enquanto uma exigência constante e exaustiva. A intensificação de campanhas de desinformação, de ataques e do discurso de ódio age para “justificar” e natualizar pautas genocidas. Há centenas ou milhares de novos conteúdos sendo gerados para deslegitimar determinadas vozes e justificar a crueldade.
“Ter voz ativa contra o racismo é mexer nessa mesma caixa de temas sensíveis para uma sociedade conservadora. E isso faz com que nós estejamos fadadas a sofrer ataques”, Lívia Teodoro
Por isso, as reflexões que as comunicadoras convidadas trouxeram são permanentes: qual a comunicação que fazemos? e quais estratégias são necessárias para que nossas histórias sejam prioridade, não alternativa ou recorte?
“Não podemos esquecer que a comunicação é um campo de batalha por poder. Se perdemos essa dimensão, perdemos o sentido da luta por esses direitos. Se as mulheres negras fossem representadas com dignidade na mídia e sua agenda política tivesse visibilidade, a correlação de forças na sociedade mudaria muito”, Juliana Nunes