Entrevista Kelly Quirino: “precisamos pensar as políticas públicas com recorte racial”

Desde o dia 25 de julho, quando é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a ARTIGO 19 vem publicando uma série de entrevistas com mulheres negras comunicadoras que reforçam que só se tem a liberdade de expressão efetivada quando múltiplas vozes rompem as barreiras estruturais e se fazem presentes no debate público. Nesse sentido, Kelly Quirino, mestre e doutora em comunicação, ressalta: “a mídia tem um papel de trazer vozes e contribuir nas nossas pautas para a mudança do legado escravocrata no Brasil. Teríamos muitos benefícios com uma comunicação mais plural”. A entrevista com a pesquisadora é a quinta realizada com Mulheres de Expressão e publicada no site da ARTIGO 19.

Leia abaixo a entrevista na íntegra.

Como a comunicação, em especial o jornalismo, pode ser um campo estratégico para as agendas políticas de mulheres negras? 

A comunicação passou a ser um campo extremamente estratégico na arena pública. Se a gente levar em consideração o contexto pós Revolução Industrial, a gente sai de espaços rurais onde a comunicação se dava no pessoal e vai para o contexto das cidades onde quem faz a comunicação, principalmente, são os jornais e, depois, no século XX, a TV e o rádio. A comunicação massiva, midiática, passa a ser extremamente estratégica e nós, pessoas negras, já percebemos isso dentro do movimento abolicionista no século XIX, quando começamos a criar os nossos primeiros jornais negros para pautar essas questões.

Durante toda história do movimento negro brasileiro, a comunicação e principalmente os jornais foram instrumentos estratégicos – num primeiro momento para defendermos a nossa liberdade, enquanto definimos pautas como, por exemplo, acesso à educação, ao trabalho, à dignidade. E também, principalmente agora em contextos do século XXI, das redes sociais, como um instrumento de denúncia. Denúncias de racismo, contra o genocídio da juventude negra, da violência contra as mulheres. Nesse contexto pós revolução industrial, a gente precisa realmente ter esses instrumentos para podermos amplificar as nossas pautas e reivindicações, senão elas vão ficar invisíveis. Infelizmente, na mídia tradicional as nossas pautas não são visibilizadas, por mais que a gente seja 54% da população.

Eu estudei no doutorado sobre a juventude negra e, quando sai o Mapa da Violência ou o Atlas da Violência, vê-se que os homens jovens e negros morrem mais. Mas é isso, a gente não consegue ter um aprofundamento desse debate. Então, cada vez mais, a comunicação é estratégica para a gente visibilizar as nossas questões e mobilizar  a opinião pública. Numa sociedade onde o racismo é estrutural, temos que gerar empatia e envolvimento, trazer pessoas brancas para a luta antirracista, mobilizar e tentar reverter alguns problemas estruturais que a gente tem por decorrência do racismo, como o genocídio negro, os piores empregos e a desigualdade nos salários de mulheres negras. A comunicação, cada vez mais, é estratégica dentro das nossas pautas.

De maneira estrutural, as mulheres negras sofrem com a falta de acesso e de garantia à comunicação e à liberdade de expressão. Na atual conjuntura, como você tem enxergado a representação das mulheres negras nas pautas de comunicação com esse “boom” das redes sociais? 

Esses dias eu participei de um trabalho de conclusão de curso de uma aluna que avaliou a representação da mulher negra nas publicidades de uma marca. E ela percebeu – o que eu achei que é um avanço, realmente – a ampliação de mulheres negras nos espaços publicitários. Então, por conta da nossa mobilização e do nosso protagonismo, estamos ampliando a nossa representação no espaço publicitário, ainda que essa representação – e ela faz essa crítica – seja na perspectiva de um padrão esguio, magro, nesse padrão que não traz mulheres comuns que são gordas, baixas, enfim. Não representam uma pluralidade do corpo da mulher.

No jornalismo, depois que a gente conseguiu pautar a questão das cotas raciais no comecinho dos anos 2000, houve um maior debate sobre a questão racial dentro do jornalismo. A minha crítica é que isso ainda se dá numa perspectiva muito factual – tem articulistas que conseguem trabalhar isso de uma forma mais contextualizada, mas a gente ainda não consegue trazer isso diariamente para dentro da mídia tradicional. A forma como os jornais brasileiros foram estruturados é uma forma de concentração midiática e a gente não consegue realmente adentrar nesses espaços e ter um debate mais profundo. Uma das soluções para isso é ampliar o número de profissionais de comunicação nas redações, nas agências de publicidade e no cinema. Eu acho que isso é uma questão do lugar de fala, pois você pode até ter uma pessoa branca antirracista que tenha sensibilidade, mas temos que ocupar esses lugares como técnicos, como diretores e proprietários.

Eu estive nos Estados Unidos recentemente e, em cinco minutos vendo uma TV em Atlanta, eu vi mais pessoas negras do que na TV no Brasil. Mesmo lá eles sendo 11% da população, eles têm uma disposição muito maior que a nossa, que somos 54%. Por mais que a gente tenha tido avanços, a nossa representação na mídia ainda é muito mínima perto do que a gente representa no nosso país.

A minha avaliação, então, é: houve um avanço principalmente depois do debate das cotas raciais, sim, mas a gente precisa avançar muito ainda. E a solução é: a gente precisa entrar nos espaços de comunicação. Que seja como empregados, contratados ou técnicos. Ou então conseguirmos montar empresas negras na área de comunicação.

De que forma as políticas públicas podem contribuir para a efetivação da liberdade de expressão das mulheres negras? 

Nós, mulheres negras no Brasil, sempre fomos de luta e protagonistas. Eu costumo dizer que, desde quando o primeiro negro foi sequestrado e chegou aqui no Brasil, a gente faz resistência. Seja por meio da religião, como disse a Lélia Gonzalez, seja introduzindo o pretoguês. Seja como elemento de resistência, como foi Dandara. A gente sempre teve protagonismo. A nossa existência, a minha e a sua, nesse mundo hoje é devido a essas mulheres que vieram antes de nós e que lutaram para que a gente estivesse aqui. Muito do que a gente conseguiu se deu por conta do nosso protagonismo, por conta da nossa resistência, mesmo com poucos recursos materiais.

A gente não teve uma política pública após a abolição. Aliás, a única política pública que a gente teve foi a política de imigração, que trouxe várias pessoas brancas dos Estados Unidos para começar a embranquecer essa população. E depois, com Gilberto Freyre falando que nunca tivemos racismo no Brasil, que as nossas relações eram relações cordiais. As políticas públicas para nós, pessoas negras, são um fenômeno muito recente. A gente consegue chegar em 98% das crianças com acesso à educação no governo FHC, em 1998, por exemplo. Ali a gente pode falar que tem política pública, mas ainda é uma política pública universalista, nem é retributiva. É uma política pública universalista em que você garante o acesso à escola, mas ainda tem a questão de não ter transporte para a escola, não ter condições básicas, da evasão escolar.  De qualquer forma, é nos anos 1970 que a gente consegue ter o acesso universal ao ensino fundamental como diretriz, mas a política específica que teremos para nós são as cotas nas universidades públicas a partir de 2003. Depois das universidades é no serviço público, que a gente teve mais recentemente.

Nós sempre tivemos os piores indicadores socioeconômicos. O cenário das mulheres nessas estatísticas mostra bem isso: a gente continua tendo os piores empregos e, consequentemente, os piores salários. Mas somos nós que mantemos a estrutura desse país, afinal, muitas de nós somos chefes de família, mães solteiras com os nosso filhos. Temos que cuidar dos filhos e, às vezes, dos pais, dos irmãos. Quando a gente diz que a mudança da estrutura social parte das mulheres negras, é porque a gente tá na base da pirâmide.

A gente precisa de políticas específicas e identitárias, e não as políticas universalistas que não nos atendem e só atendem as pessoas brancas. Por isso eu penso que precisamos, sim, pensar as políticas públicas com recorte racial e pautas identitárias para olhar para nós, mulheres negras e quilombolas. Só assim podemos garantir melhores condições para as próximas gerações. Só assim a gente reduz o índice de gravidez na adolescência, que é um problema muito sério, criar aparelhos de atendimento para as crianças, como creches e escolas que deem condições para as mulheres negras e mães estudarem. São muitas coisas que a gente precisa resolver para mudar esse cenário de exclusão e concentração de renda. Para essa nossa geração agora não cabe só reclamar, temos que ocupar os espaços de poder e sermos agentes nas tomadas de decisão. Quando falo desses espaços eu falo da mídia, do judiciário, das ONGs, das associações de base. E, assim, pautar as nossas questões.

Qual é a importância do acesso à academia na formação de mulheres negras que utilizam o seu protagonismo frente às discussões sobre discriminações de gênero, raça e classe e outros temas na comunicação? 

A academia é um espaço de poder. Quando você consegue adentrar esse espaço e consegue entender quais são as regras do jogo, você consegue ir além de só fazer pesquisa. A academia também te outorga um título que te coloca num lugar de autoridade. A gente sai do lugar de subalterno que a história nos renegou e passa a ser uma autoridade. Uma mulher negra que chega a ser mestre e doutora num espaço acadêmico, pautando as nossas questões, as pessoas gostando ou não vão ter que nos ouvir, é sinal que a gente entendeu as regras do jogo, a gente jogou e a gente venceu. Claro que, para fazer tudo isso, não é um espaço fácil, há muita resistência com as pautas raciais e de entender que é militância o que a gente faz. Nós encontramos ainda a barreira de termos poucos professores e professoras negras nesses espaços. É um campo muito estratégico.

Várias de nós, inclusive eu, que sou uma mulher de 38 anos, começamos as nossas pesquisas numa perspectiva de epistemologia europeia, branca e cristã. A gente tá fortalecendo uma epistemologia afrocentrada da afro diáspora. É o que a gente tem trabalhado como pesquisadoras e pesquisadores negros, pois o racismo impediu que a gente pudesse ter essa legitimidade outorgando o conhecimento, outorgou isso para os europeus apenas e não para as pessoas afrodescendentes. O espaço precisa ser ocupado e isso nos permite ocupar outros espaços que não só a academia – você é convidada para dar uma entrevista, dar uma palestra, para ir em uma conferência, assumir um cargo público pelo conhecimento que você tem. Você viaja para o exterior, faz parcerias e assim vai. Mas é isso, esse não é o único caminho. Nós temos várias habilidades e somos pessoas diferentes. Você, mulher negra, não necessariamente tem que ir para uma universidade fazer mestrado e doutorado. Você pode ser excelente onde estiver. Isso vem das nossos ancestrais e nunca será tirado de nós. Eu falo do meu lugar de fala como uma pesquisadora que fez mestrado e doutorado no campo da comunicação, que eu amo e me sinto extremamente confortável. Mas eu sei que não é fácil para todo mundo e temos que aprender a respeitar os limites. Assim também como há mulheres negras que não querem ir para o espaço da militância, pois ela também sofre os impactos do racismo.

Qual a importância da multiplicidade de vozes e de diferentes grupos sociais exercerem sua liberdade de expressão? 

Estamos falando em realmente reduzir as desigualdades sociais, afinal, até quando vamos ficar matando 77% dos nosso jovens negros? Quanto, em milhões, a gente perde com o genocídio da população negra? Quando a gente consegue, no campo da comunicação, ter a voz de inúmeros segmentos sociais, a gente tem a pluralidade de quem podemos atingir: as pautas de nós, mulheres negras, de jovens, de movimentos LGBTQI+ e de pessoas com deficiência. Nós precisamos romper com essa ordem no século XXI. Eu acredito que, por exemplo, a educomunicação deveria ser uma matéria nas escolas, porque você precisa ensinar as crianças a aprenderem a respeitar as diferenças e que a diferença é muito importante para o avanço científico, tecnológico e econômico do nosso país.

Somos um país muito diverso e não damos possibilidades para essas pessoas. Quanto talento a gente perde? Quantas cientistas, engenheiras, juízas, promotoras, jornalistas, médicas, quantas estamos perdendo para esse sistema escravocrata? Nosso país foi construído por meio da violência e eu costumo dizer que a gente nunca foi cordial, a violência só vem crescendo. Eu acredito que, nesses momentos, a mídia tem esse papel de trazer vozes e contribuir com as nossas pautas para a mudança do legado escravocrata no Brasil. Teríamos muitos benefícios tendo uma comunicação mais plural.

A ARTIGO 19 valoriza a liberdade de expressão e multiplicidade de perspectivas e vozes, as opiniões expressas nas entrevistas não necessariamente representam os posicionamentos da organização.

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