Monitoramento da sociedade civil aponta que água e esgoto não são prioridade na agenda política do país
Lá se vão seis meses desde o primeiro caso do novo coronavírus notificado no Brasil. No começo de agosto a contabilidade oficial do Ministério da Saúde indicava mais de 2,8 milhões de casos confirmados e a perda de vidas em território nacional agora ultrapassa a triste marca de 100 mil óbitos. O drama da Covid-19 seguramente mexeu com um enorme conjunto de setores da vida em sociedade – e, entre as principais recomendações para conter o avanço da epidemia, está a frequente lavagem das mãos. Por isso, uma das motivações desta Nota parte da seguinte pergunta: será que o combate à pandemia, pelo menos, gerou uma maior comoção
que resulte na priorização da garantia de acesso aos serviços de água e esgoto?
A inquietação levou à pesquisa.
As correlações entre saúde e saneamento básico são várias. Em momentos de “normalidade”, fora da pandemia, as doenças de veiculação hídrica acontecem aos milhares todos os anos, como, por exemplo, a dengue e doenças gastrointestinais infecciosas. “Normalidade” porque, em pleno século XXI, o Brasil ainda está anos-luz da universalização deste serviço básico. Para dificultar ainda mais, a principal medida para evitar a transmissão do novo coronavírus (Sars-CoV-2) é exatamente a correta limpeza das mãos. E mais, este vírus é tão desafiador que desde dezembro de 2019, quando foi identificado o primeiro caso da doença na China, até o momento, a ciência ainda não foi capaz de compreender se e como a Covid-19 pode ser transmitida pelos esgotos.
Resta ainda compreender como as políticas públicas deste setor foram e estão sendo conduzidas por nossos governantes.
Sob a ótica estritamente legalista, nota-se que todos os estados brasileiros tomaram alguma medida para garantir o acesso à água, seja com a não interrupção dos serviços de saneamento básico e/ou com a isenção da cobrança das tarifas para as famílias em situação de pobreza. Esse quadro geral ficou devidamente ilustrado a partir de artigo publicado no site do Observatório das Águas em 7 de julho1, o qual desde então indicava “a necessidade de uma maior transparência, uma comunicação mais assertiva e uma prestação de contas mais adequada, tanto dos governos estaduais quanto das empresas de saneamento”.
Entretanto, diante do grau de impacto da pandemia da Covid-19 na saúde e na vida da população brasileira, em especial nas camadas em situação de vulnerabilidade, um grau de detalhamento a mais se fazia necessário. Portanto, foi colocada uma lupa nessa investigação a partir de um conjunto extenso de demandas e questionamentos realizados via Lei de Acesso Informação, buscando compreender quais ações foram adotadas pelos estados para garantir o abastecimento de água e esgotamento sanitário durante a pandemia e como se dará o financiamento de tais ações. Esse processo foi conduzido pela ARTIGO 19, organização internacional especializada em assuntos de transparência, e os resultados serão sistematizados e publicados para que todos possam ter acesso.
Foram 216 pedidos de informação enviados e acompanhados entre os dias 01 de junho e 22 de julho, direcionados às secretarias de governo e às companhias de abastecimento2 de todos os estados e do Distrito Federal.
As respostas obtidas permitem afirmar que: de forma sistemática e reiterada, o Estado brasileiro, representado nesta pesquisa pelos governos estaduais, nega-se a assumir sua responsabilidade e protagonismo na garantia da melhoria progressiva dos serviços de água e esgoto, mesmo durante a pandemia. Evidentemente, isso é reflexo de uma postura histórica construída ao longo de muitos anos e os dados levantados dão consistência para tal interpretação. Trata-se, portanto, de afirmações feitas baseadas em dados e não em achismos ou paixões.
Aos dados, então!
● Dos 108 pedidos de informação enviados para os governos estaduais, apenas 15 foram respondidos por este ator3. Nenhuma das respostas foi satisfatória, a maioria delas indicou que a pergunta fosse direcionada à companhia de água, mesmo após recurso em primeira e segunda instância;
● Apenas o Distrito Federal, o Espírito Santo, Pernambuco e Rio Grande do Norte apresentaram de fato planos de ação para a implementação de medidas durante a pandemia;
● O pedido de informação que questionava se a fiscalização dos serviços de abastecimento de água era considerada uma atividade essencial durante a pandemia, foi respondido por apenas 12 unidades federativas. Apesar desse pedido de informação ter sido direcionado exclusivamente para os governos dos estados, 8 dos pedidos foram encaminhados e respondidos pelas próprias
companhias. Os 4 pedidos sobre fiscalização foram respondidos pelos governos de forma insatisfatória, mesmo após envio de recurso;
● Nenhuma companhia forneceu tabela orçamentária e de gastos efetuados – algumas afirmaram tratar-se de informação estratégica para a companhia, por serem de capital aberto. Pelo menos 9 companhias estaduais informaram que estão utilizando recursos próprios para lidar com os impactos orçamentários ocasionados pela pandemia;
● Em seis casos a resposta ao pedido foi negada com a justificativa de trabalho adicional e/ou por se tratar de informação estratégica.
Fica evidente uma posição extremamente passiva dos governos estaduais, terceirizando responsabilidades de políticas públicas e atenção aos mais vulneráveis em um período de combate à pandemia. Em primeiro lugar, destaca-se que empresa estadual de saneamento não é formuladora de política pública. Ela deve ser uma operadora de serviços, a partir do estipulado pelos planos de saneamento, de acordo com o que está escrito em seus contratos e ao que as agências reguladoras determinam em seus processos. Em se tratando de uma política pública com impactos diretos na saúde, que coloca em risco a vida das pessoas, como governos
estaduais podem terceirizar essa tomada de decisões?
Também chama a atenção o fato de que os governos estaduais, ao se negarem ou terceirizarem respostas sobre a fiscalização, parecem entender que as agências reguladoras estaduais não fazem parte da sua própria estrutura. A legislação garante independência decisória e orçamentária às agências reguladoras, mas isso não significa que elas são um “corpo estranho” ao governo. Pelo contrário, o relator especial da ONU para o tema, Leo Heller, afirma categoricamente que as agências reguladoras também têm a responsabilidade de zelar pelos direitos humanos relacionados à água e ao esgoto4.
Ainda, nos preocupa a dificuldade em obter informações sobre o acesso à água, considerando o baixo número de respostas recebidas de maneira satisfatória. Em um momento de crise sanitária, os mecanismos de transparência e disponibilização de informações à população deveriam ser reforçados, ainda mais se tratando de um direito essencial para a prevenção do contágio de Covid-19.
Esse retrato da realidade é extremamente relevante para que a sociedade brasileira desenvolva um debate sério, especialmente nos dias de hoje em que saneamento está nas capas de jornais e sofrendo alterações legislativas relevantes. Não se trata do debate entre a prestação privada ou pública. O fato é que, independente do modelo de prestação do serviço, o Estado brasileiro tem responsabilidades indelegáveis, de planejar, fiscalizar e garantir que as condições de vida da população melhorem.
Essa é a dimensão dos direitos humanos, que deveriam ser respeitados e internalizados pelo Estado brasileiro. E aqui é importante que se faça um esclarecimento. A pesquisa explorada nesta nota foi limitada à esfera estadual por dois motivos: porque os governos estaduais assumiram a dianteira ao estabelecer regras legais sobre o acesso à água durante a pandemia e pelo motivo histórico deste setor no Brasil ainda vastamente ocupado pelas companhias estaduais (o que garantiu um escopo representativo). Isso não significa excluir a União e os municípios de suas responsabilidades. Como o próprio título desta nota nos lembra, o Estado brasileiro como um todo tem um papel central e deve envidar todos os esforços à universalização, tanto com os cuidados emergenciais durante a pandemia, quanto depois.
Não por acaso em 2010 e 2015 o acesso aos serviços de água potável e esgotamento sanitário foram reconhecidos como direitos humanos. E desse reconhecimento decorre que os entes estatais têm a função de garantir que as condições desses serviços melhorem de forma progressiva, colocando à disposição todos os esforços e recursos disponíveis para alcançar tal objetivo.
Essa clareza é fundamental para que o Brasil consiga ter o avanço civilizatório em direção à universalização do acesso à água e saneamento, com serviços qualificados, transparência das informações e, mais importante ainda, sem deixar ninguém para trás, conforme preconiza a Agenda 2030 e em especial o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável No. 6: “Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos“.
São Paulo, 17 de agosto de 2020
Assinam,
Abraço Guarapiranga
ARTIGO 19
Associação Bem-te-vi Diversidade
Atelier Jambeiro
Associação Movimento Garça Vermelha
Bons Ventos
Centro Santo Dias de Direitos Humanos
Cidades Afetivas
Espaço de Formação, Assessoria e Documentação
Fundação Avina
Instituto Alana
Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP)
Instituto MARAMAR
Instituto Trata Brasil
Planetapontoocom
Rede Ecodespertar
Toxisphera Associação de Saúde Ambiental
1. https://observatoriodasaguas.org/agua-e-coronavirus-monitoramento-das-medidas-para-garantir-saneamento-em-tempos-de-pandemia/
2. Com o intuito de delimitar o escopo da pesquisa, os pedidos foram enviados às Companhias estaduais de abastecimento de água pois elas são responsáveis pelo atendimento de 74,2% da população brasileira.
3. Até o fechamento da análise não obtivemos resposta para 51 dos pedidos e 42 foram respondidos pelas companhias de água, mesmo tendo sido direcionados inicialmente para as secretarias de governo do estado.
4.A/HRC/36/45:
https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=22164&LangID=E