Artigo inédito: feminismos e direito ao protesto no Brasil

No Brasil, o direito de livre reunião e protesto é assegurado pela Constituição Federal e por diversos instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo país. O poder público deve garantir a existência de protestos e manifestações, inclusive os realizados por grupos discriminados e marginalizados na sociedade, como mulheres, negros, pessoas LGBTQI+, pessoas com deficiência, necessários para conquista de outros direitos historicamente negados, e para a construção um país mais plural — legado especialmente evidente neste mês marcado pelo Dia Internacional das Mulheres (08/03) e o Dia Internacional contra a Discriminação Racial (21/03).

Mas na realidade nem sempre é assim. A ARTIGO 19 vem monitorando as violações específicas sofridas por mulheres em relação à liberdade de expressão. No relatório Nas Ruas, nas Leis e nos Tribunais, publicado em 2017, foram elencadas violações sofridas nesse sentido no âmbito de protestos. Práticas como abuso psicológico e intimidação sexual, revista por agentes do gênero oposto e revista vexatória foram verificados, em um contexto em que “a intimidação sexual acaba por fazer com que muitas mulheres abandonem o espaço público pelo medo do constrangimento e da violência, o que, quando ocorre em um contexto de protesto, acaba ainda limitando a liberdade de manifestação”.

As restrições não acontecem só na ruas, mas têm também uma faceta institucional em que, muitas vezes, o sistema de justiça é acionado para legitimar a violação de direitos que deveria ajudar a garantir. Um dos casos acompanhados pelo pela ARTIGO 19 é emblemático nesse sentido: o caso de uma manifestante que participou de um dos protestos da Marcha das Vadias, em 2013, e foi criminalizada. Por expor seus seios na ocasião do protesto, ela foi detida posteriormente condenada a 3 meses de detenção, convertidos em multa no valor de R$ 1000,00, pela prática de ato obsceno (art. 233 do Código Penal).

A defesa da manifestante recorreu da sentença imposta e a ARTIGO 19 protocolou um Amicus Curiae (quando uma pessoa ou entidade que não fazia parte do caso inicialmente se propõe a auxiliar o tribunal, oferecendo esclarecimentos sobre questões essenciais ao processo), demonstrando que a condenação representa uma violação aos direitos à liberdade de expressão e à liberdade de reunião. É ainda mais grave considerando que o motivo da condenação – a nudez – é justamente a ferramenta crítica do protesto em questão. Ainda assim, a condenação foi confirmada pelo Colégio Recursal de Guarulhos e, no momento, pende recurso sobre a admissibilidade de um recurso apresentado no Supremo Tribunal Federal. A ARTIGO 19, junto ao Núcleo Especializado de Promoção dos Direitos da Mulher (NUDEM) da Defensoria Pública de São Paulo, protocolou novo pedido de ingresso como Amicus Curiae também junto ao STF.

Outro caso de restrição à liberdade de expressão envolvendo a questão de gênero está pendente nos tribunais: da pesquisadora feminista que foi bloqueada no Twitter pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub. Ela impetrou mandado de segurança alegando que o Twitter, assim como outras mídias sociais, tornou-se parte do espaço de participação política. Ela defende que pelo fato de o Ministro da Educação comentar sobre políticas públicas e interagir com a população enquanto representante do Estado por meio de sua conta da Twitter, esta conta é uma ferramenta de governança e cumpre um papel oficial, razão pela qual o direito de comunicação e o acesso do público a essas informações não pode ser cerceado.

A ARTIGO 19 escreveu um parecer afirmando que o bloqueio no Twitter gerou uma tripla violação: (1) ela deixou de ter acesso a informação de interesse público veiculada pelo Ministro em sua conta; (2) teve o seu direito à liberdade de expressão violado ao ser impedida de interagir com ele por meio da referida plataforma; (3) ficou impedida de divulgar, comentar ou contradizer afirmações e informações publicadas pelo Ministro, não podendo assim exercer sua cidadania e direitos políticos. Com isso, o direito de liberdade de expressão e informação também foi violado em sua dimensão coletiva, gerando impactos em toda a sociedade. O mandado de segurança foi negado, porém, pois o Superior Tribunal de Justiça considerou que não se tratava de ato de autoridade sujeito a esse instrumento processual.

É ainda mais grave observar que o bloqueio ocorreu em razão da atuação feminista e dos posicionamentos políticos da pesquisadora, cujo trabalho no campo dos direitos das mulheres é amplamente reconhecido. É uma discriminação expressa a um indivíduo com uma posição discordante, o que corresponde a uma restrição ilegítima da liberdade de expressão – um ato que silencia vozes críticas e que foge dos contornos de uma sociedade democrática. No mesmo sentido vai a criminalização da manifestante, cujo protesto tinha evidente caráter político e feminista. Ambos casos demonstram uma atuação coordenada do judiciário em ser conivente com violações à liberdade de expressão quando elas atingem mulheres que se posicionam politicamente, ignorando a importância dessas vozes para a concretização de uma sociedade mais igualitária.

Além do litígio estratégico realizado nessa área – por meio de pareceres e da participação como Amicus Curiae em ações judiciais como essas – a ARTIGO 19 vem pautando sua atuação jurídica e estratégica reconhecendo que só teremos o direito à liberdade de expressão e informação amplamente efetivados se houver a defesa intransigente dos direitos das mulheres. Nesse sentido, a sociedade civil organizada, os movimentos sociais e os setores progressistas do campo jurídico são atores fundamentais no embate nos tribunais em defesa de direitos, para barrar decisões criminalizadoras e garantir a pluralidade de vozes, existências e liberdades. Ou seja, para avançarmos em relação às contradições presentes no Sistema de Justiça e resistir à articulação institucional que acontece no sentido de violar liberdades individuais e coletivas.

Liberdade de expressão e pertencimento

Em 2013, Resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU denominada ”O papel da liberdade de opinião e expressão para o empoderamento feminino” exige que os Estados garantam que mulheres e meninas possam exercer integralmente seu direito à livre opinião e expressão, sem que sejam vítimas de discriminação como represália. A liberdade de expressão permite a busca e a concretização de outros direitos — o que a torna absolutamente essencial para aqueles grupos cujos direitos são mais contundentemente desrespeitados e violados. A garantia da liberdade de expressão de grupos discriminados, portanto, é indispensável, para reivindicação de outros direitos.

A garantia da liberdade de expressão e o dever de eliminação, pelo Estado, de medidas consideradas discriminatórias em todos os campos são intrinsecamente dependentes. No caso dos direitos das mulheres, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos posicionou-­se no sentido de que:

“Para assegurar a proteção e o respeito aos direitos humanos da mulher, é imprescindível o pleno exercício do direito à liberdade de expressão e informação. O exercício amplo e sem restrição deste direito permitirá uma maior participação ativa da mulher na denúncia de abusos e busca de soluções que resultarão em um maior respeito a todos seus direitos fundamentais. O silêncio é o maior aliado para perpetuar os abusos e desigualdades a que se encontra sujeita a mulher em todo o hemisfério”.

A luta em prol da plena garantia do direito de protesto, liberdade de expressão e igualdade das mulheres permeia não apenas seu gênero, mas as intersecções, como as de raça e classes, que afetam direta e indiretamente o acesso a direitos e o risco de sofrerem violações e violências sistemáticas, e institucionais praticadas pelo próprio Estado. O movimento feminista já compreende a impossibilidade de se referir a um feminismo único e homogêneo. Um exemplo são os dados apurados, em 2019, pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que apontam para o fato que mulheres negras e pardas recebem, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%), estando logo atrás deles as mulheres brancas, que possuem rendimentos superiores não apenas aos das mulheres pretas ou pardas, como também aos dos homens pretos ou pardos.

A existência de dados como esses demonstram a necessidade da consideração de múltiplas intersecções, que não só o gênero, para a construção de lutas feministas efetivas, coerentes e plurais. Nesse sentido, grandes nomes, como o de Marielle Franco, exemplificam a vulnerabilidade e importância da visibilidade de mulheres negras, periféricas, lésbicas, bissexuais e trans, bem como quaisquer outras denominações que transcendem padrões estéticos e comportamentais socialmente impostos.

Na intersecção entre a luta feminista e o direito a protestos, é relevante afirmar que locais públicos se configuram como hostis ou inseguros para mulheres, estando marcados pelo risco de estupro e outras violências. Isto torna a ocupação feminina das ruas não apenas um exercício da liberdade de expressão e do direito de protesto, mas uma reivindicação por segurança, presença e pertencimento na vida política do país e nos próprios ambientes públicos.

Por Catharina Vilela, Guilherme Barbosa e Laura Varella, integrantes do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19

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