Em audiência, Comissão manifestou preocupação com o cenário brasileiro. Entidades solicitaram uma visita oficial dos relatores da ONU e OEA para Liberdade de Expressão e para os Direitos das Mulheres
Nesta sexta-feira, dia 6, entidades da sociedade civil brasileira denunciaram o governo Bolsonaro na 175ª audiência temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA), realizada no Haiti, por violações sistemáticas à liberdade de expressão no país, ataques à imprensa, censura às liberdades artística e cultural, sufocamento dos espaços de participação social e acesso à informação pública. Diante das denúncias, o governo brasileiro se limitou a negar as acusações, sem apresentar alternativas nem respostas concretas.
Foram apresentados casos emblemáticos da criminalização da prática jornalística, como do jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, que ganhou repercussão internacional, e de Patrícia Campos Mello, da Folha de São Paulo, alvo de ameaças de morte, de difamação e todo tipo de ataques. Mais recentemente, outra jornalista, Vera Magalhães, entrou no foco dos ataques do presidente e de sua família. Vale ressaltar que os ataques às jornalistas citadas se agravam em razão de seu caráter machista.
Para Margarette May Macaulay, advogada jamaicana especialista na defesa de direitos das mulheres e comissária da CIDH, há um descompasso entre o que está previsto constitucionalmente no Brasil e a prática do governo brasileiro. “Enquanto mulher, fico muito preocupada com o fato de o presidente da República cometer ataques e fazer colocações agressivas e ofensivas a jornalistas mulheres. Isto é uma contradição gritante entre os direitos constitucionais, ainda mais vindo de um líder do Estado. Quando o presidente diz coisas como as que diz, é como se desse uma licença para que todos tratem as mulheres de forma desrespeitosa. É muito preocupante o que está acontecendo”.
O Relator Especial para a Liberdade de Expressão da OEA, Edison Lanza, pediu explicações sobre a retórica anti-imprensa que vem sendo adotada por autoridades públicas e rebateu o argumento do governo de que há um programa de proteção aos defensores de direitos humanos que contempla a categoria de jornalistas. “Nenhuma política de proteção à liberdade de expressão pode ser consolidada sem haver política de prevenção. E prevenir ataques à liberdade de expressão inclui promover e valorizar o trabalho jornalístico. O que o governo Bolsonaro tem feito é apostar numa retórica anti-imprensa. Não há política efetiva se propaga-se, de forma sistemática, que tudo que a imprensa faz é fake news e mentira”, afirmou.
Lanza questionou o governo sobre os constrangimentos e ameaças que são feitos. “É evidente que há uma política de assédio em linha, viral, massiva e pública. Eu mesmo fui alvo, em meu Twitter, de ataques por parte de pessoas brasileiras me ameaçando. É uma epidemia de ataques virais e em linha. O que se está fazendo quanto a isso?”.
Joel Hernández Garcia, vice-presidente da Comissão Jurídica Interamericana e relator especial do caso brasileiro, ressaltou que há forte preocupação da CIDH com o cenário brasileiro. “Não aceitamos a audiência a troco de nada, de forma gratuita. Aceitamos pois expressamos preocupação a respeito da situação do Brasil”, salientou. “Não temos dúvida de que o Brasil, tanto sociedade quanto Estado, valorizam a liberdade de expressão. Mas vivemos um momento inusitado. Infelizmente, a dinâmica da comunicação com novas ferramentas tecnológicas tem sido usada para estigmatizar grupos sociais e atacar o direito à comunicação e à informação. Não é algo que só acontece no Brasil, é verdade, mas trata-se de uma política de estigmatizar, sobretudo, comunicadores”.
Renata Mielli, coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, ressaltou que a violência contra comunicadores no Brasil não é algo novo. O país aparece na 105ª posição entre 180 países no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa da Repórteres sem Fronteiras, em uma situação que vem se deteriorando nos últimos anos. A ARTIGO 19 destacou no seu Relatório Global sobre liberdade de expressão, divulgado em dezembro de 2019, que o Brasil registrou nos três anos anteriores uma queda vertiginosa de seus indicadores de liberdade. “O que motivou nossas organizações à recorrerem à Comissão foi exatamente a cristalização e agravamento do cenário de violações à liberdade de expressão, em particular a partir de 2019. O que eram violações difusas, passaram a se constituir num quadro institucional de ataques à liberdade de expressão”, afirmou na abertura da sessão.
A censura às liberdades artística e cultural também foi alvo de denúncia na Comissão. Olívia Bandeira, do Intervozes, afirmou que o governo federal e seus aliados adotaram o discurso – e a prática – de combater um hipotético inimigo da nação, o ‘marxismo cultural’. “É uma guerra que visa eliminar os artistas e obras que manifestam posições diferentes das mantidas pelo governo ou que simplesmente promovem a diversidade cultural. Já são mais de 40 casos de violação à liberdade de expressão artística e cultural em 2019 e 2020. Destes, 18 são de responsabilidade de órgãos ou autoridades da administração federal, e 22 em âmbito estadual ou municipal, mostrando como a prática do governo federal incentiva e autoriza violações em vários níveis”.
Diante desse cenário, as organizações peticionárias da audiência solicitaram que o tema da liberdade de expressão no Brasil seja tratado como prioritário no âmbito da CIDH, ressaltando a importância da Comissão emitir comunicados para os casos mais graves, recorrendo a medidas cautelares quando necessário. Também foi solicitada uma visita oficial conjunta do Relator Especial de Liberdade de Expressão da CIDH/OEA, o Relator de Liberdade de Expressão da ONU, junto também ao comissionado para o Brasil e a Relatora para os Direitos das Mulheres
Casos
Helena Bertho, da Revista AzMina, apresentou seu caso aos relatores. A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, foi às redes sociais desqualificar o trabalho jornalístico da revista por produzir uma reportagem com informações sobre aborto seguro, cuja fonte era a Organização Mundial da Saúde (OMS). A ministra ameaçou acionar o sistema de justiça contra a revista. “Nós temos vivido sob o medo dos rumos que essa investigação pode tomar. Não porque cometemos um crime. Quanto a isso estamos tranquilas, porque sabemos que só divulgamos informações públicas de um dos órgãos mais respeitados do mundo quando se trata de saúde. Mas o simples fato de um Ministério do governo federal ter se dado ao trabalho de fazer essa denúncia, quando qualquer advogado poderia identificar que não há crime ali, nos assusta”.
O produtor audiovisual Émerson Maranhão também apresentou a perseguição artística que sofreu, destacando que desde o início desse governo, “acumulam-se relatos de espetáculos e exposições cancelados em centros culturais públicos, palestras e eventos acadêmicos também foram impedidos de acontecer, financiamentos a importantes festivais de cinema e de teatro foram suspensos, inviabilizando sua existência”.
Ao se pronunciar sobre os casos, Lanza destacou que o Estado e o Poder Público não podem interferir em concursos e editais públicos. “As denúncias que foram feitas no campo da cultura mostram que é necessário que haja políticas para assegurar a neutralidade do governo em relação a esses processos. Não vamos dizer qual ideia deve predominar em uma determinada sociedade, mas o governo tem que ter critérios objetivos tanto para os editais culturais como para a distribuição de publicidade oficial para meios de comunicação”, pontuou.
Sem respostas
Os representantes do governo na audiência se limitaram a repetir as garantias constitucionais e o aparato legal de proteção aos direitos humanos existente no país, mas que não vêm sendo respeitados pelo Estado brasileiro. “No Brasil, não existe censura. O governo, por meio do presidente, expressa divergências com setores da imprensa, o que faz parte do jogo democrático. Reafirmarmos nosso compromisso com a mais ampla liberdade de expressão da sociedade brasileira e da imprensa. A imprensa, cotidianamente, faz todas as críticas e ataques que acha pertinente, e não há nenhuma iniciativa de censura por nossa parte”, respondeu Alexandre Magno, secretário-adjunto de Políticas Globais do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Para Juliana Fonteles, da Abraji, a cartilha lançada nesta semana pelo governo federal “não passa de mero expediente argumentativo”.
Em relação ao Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, da Secretaria Nacional de Cidadania do Ministério dos Direitos Humanos, Denise Dora, diretora executiva da ARTIGO 19, destacou que apesar dos esforços da sociedade civil brasileira, ele vem sendo subutilizado. “Os defensores e defensoras de direitos humanos e comunicadores não buscam o programa porque há uma fundada desconfiança da capacidade do governo em protege-los, e isso acontece quando o governo é o próprio agente da violação”, frisou.
Parte da denúncia também se referia ao desmonte da comunicação pública e às sucessivas práticas de censura aos jornalistas da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), como a restrição ao uso da palavra “ditadura” e a imagens da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018. Para o consultor jurídico da EBC, Francisco Lima, não há cortes nem censura na produção jornalística. “O que há é respeito. Não utilizamos determinados termos para não confundir ou gerar entendimentos dúbios, proselitismos são vedados. O uso de termos dúbios acabam por confundir o público em vez de promover o entendimento correto”, afirmou.
A audiência pode ser assistida na íntegra aqui.
Violência contra população negra
Em tempos de autoritarismo e ameaças às instituições democráticas brasileiras, a união da sociedade civil para a garantia do direitos humanos no país é fundamental. Após a sessão sobre violações da liberdade de expressão, a CIDH ouviu de representantes de diversas organizações as denúncias de violência policial contra a população negra nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Em foco, o caso de Paraisópolis, ocorrido em novembro passado e que resultou no assassinato de 9 jovens em uma ação policial e os homicídios de crianças cometidos por forças de segurança no Rio de Janeiro.
A Comissão questionou o governo sobre a impunidade das forças policiais nos casos contra a população negra e cobrou medidas efetivas para combater a discriminação racial.
A CIDH
A CIDH, órgão independente e autônomo da OEA, realiza várias sessões por ano para discutir temas como este em toda a região. O órgão tem a incumbência de observar e promover a defesa dos direitos humanos, atuando como órgão consultivo da OEA neste tema. Cada sessão reúne centenas de defensores e defensoras dos direitos humanos no continente, além de delegações dos Estados constituídas por altas autoridades em matéria de direitos humanos, acadêmicos, dentre outros.