Entrevista Morena Mariah: “a única forma de chegarmos ao futuro é criando agora as condições necessários para mudar o curso da história”

“A liberdade de se expressar está diretamente relacionada com a experimentação de quem podemos ser” – é assim que inauguramos a quarta entrevista do especial “Mulheres de Expressão: liberdade de expressão e comunicação” com a pesquisadora e fundadora da plataforma de educação Afrofuturo Morena Mariah sobre a capacidade utópica de existir no futuro: onde estão as mulheres negras no conceito/filosofia futurística? Para além de resistir, que outras possibilidades de existência essas vozes trazem?

Essa conversa faz parte de uma série de entrevistas que começou no dia 25 de julho, quando é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, e estão sendo lançadas semanalmente nos canais de comunicação da  ARTIGO 19 na perspectiva de reunir falas potentes de mulheres negras que discutem e pesquisam discriminações de gênero, raça e classe e outros temas na comunicação. As entrevistas anteriores podem ser lidas aqui.

Leia abaixo a entrevista na íntegra:

Como você define o termo Afrofuturismo e qual a relevância dele para o povo preto no cenário político-social atual?

Utilizo a definição da pesquisadora Kênia Freitas sobre a abrangência do Afrofuturismo como um movimento não só estético, mas também político e crítico, de entender o passado, presente e futuro a partir de uma perspectiva enegrecida, por assim dizer. Nas palavras dela, “Afrofuturismo é um movimento estético, político e crítico plural e multifacetado, tendo como ponto em comum uma narrativa especulativa, alternativa e fantástica para as experiências das populações negras – de todo o mundo – no passado, no presente e no futuro.”

Eu utilizo essa definição porque acredito que refletir sobre o futuro não pode ser um movimento apenas do campo da estética ou da literatura a partir das narrativas de ficção científica, como é caracterizado mais “tradicionalmente” o Afrofuturismo. Essas narrativas imaginativas que criam mundos a partir da pergunta mágica “E se…?” são, sem dúvidas, um dos campos mais importantes e propulsores deste movimento enquanto exercício criativo de novas possibilidades de futuro. Porém o meu trabalho tem sido pesquisar e propagar o Afrofuturismo enquanto uma lente de reflexão e criação de futuro para pessoas negras e sua cultura.

Acredito que propor uma reflexão sobre futuro num contexto de genocídio da população negra como o que vivemos no Brasil, e não só da juventude mas sim de todo o grupo populacional composto por pessoas negras, é por si só bastante inovador. E entendo também que a única forma de chegarmos ao futuro é criando agora os mecanismos e condições necessários para mudar o curso da história que vivemos pós-colonização. É necessário um processo aprofundado de conscientização por parte das pessoas negras sobre as opressões e violências às quais estamos submetidos. É fundamental entendermos que raça não é recorte na análise social, raça é o fator fundante da sociedade brasileira como conhecemos hoje. Podemos pegar os dados de qualquer tipo de violência hoje e veremos que os piores índices estão entre a população negra. Entre os LGBTs, quem mais morre são as pessoas negras. Entre mortalidade infantil e materna também são pessoas negras, os mais baixos salários são de pessoas negras, os menos escolarizados são as pessoas negras. Ou seja, não é possível recortar uma realidade que se aplica a todos os ângulos dessa sociedade. É preciso assumir raça como aspecto central das discussões políticas.

Por que você começou a estudar futurologia/afrofuturismo? O que te motivou? 

Minha pesquisa sobre afrofuturismo começou há alguns anos e o primeiro contato foi através da ficção científica norte-americana. Lendo a escritora Octavia Butler me vi diante de uma narrativa negra até então desconhecida pra mim. Eu já tinha lido alguns textos sobre o tema e já admirava o trabalho da cantora Ellen Oléria, que tem um álbum que inclusive foi o que nomeou meu trabalho, ela é uma artista que admiro demais. Já o contato com futurologia se deu através do trabalho de pesquisa que desenvolvo em parceria com a Torus, que é uma rede mundial de pesquisadores, onde falamos sobre temas emergentes e lá já tivemos muitos papos sobre futuro. Dali também tirei muitas referências pro meu trabalho.

Quando comecei a pesquisar as referências, me deparei com uma questão: nas discussões sobre futurismo ou futurologia vemos sempre o mesmo padrão de pessoas nos espaços, oferecendo cursos, dando aulas: pessoas brancas, de classe média alta, fluentes em inglês, com trabalhos no exterior, etc. E eu, apesar de curtir muito a temática, sentia que aquelas pessoas falam de um futuro que não é o meu. Comecei a me perguntar o que aconteceria com pessoas como eu quando o futuro planejado por essas pessoas – cheio de carros automáticos, próteses corporais inteligentes, automação de serviços, viagens para Marte – chegasse. Que lugar eu e as pessoas que vêm de onde eu venho vão ocupar se esse futuro se consolidar? Não gostei muito da conclusão à qual cheguei e resolvi fazer alguma coisa sobre isso. Foi assim que surgiu o Afrofuturo, querendo impulsionar discussões sobre o futuro em espaços onde esse assunto está sendo pouco pautado.

Como o conceito de Afrofuturismo conversa e interage com as pautas de luta da população negra no Brasil? Existe essa relação? 

Não tenho dúvida que o Afrofuturismo pode conversar com as lutas sociais do povo negro. Na verdade, eu acredito que só existirá futuro se lutarmos por ele. A própria narrativa sobre um futuro negro se dá com base na disputa de narrativa. E narrativa é poder. O Muhammad Yunnus diz em um vídeo dele que a ficção científica cria realidades para que a ciência as persiga. Ele fala sobre a construção de Ficção Social. Eu acredito que precisamos projetar o futuro e planejar formas de realizá-lo a partir das nossas próprias prioridades, tendo consciência histórica do processo pelo qual passamos no passado e que nos trouxe até esse presente. É preciso projetar essas ficções sociais para que, no futuro, elas sejam realidade concreta. Eu não consigo admitir que teremos carros autônomos, viagens à Marte e inteligência artificial superdesenvolvida, mas não priorizamos resolver problemas como a violência policial nas favelas do Brasil, a fome, a violência doméstica. Eu não só não admito como estou me movimentando para que um dia essas coisas pertençam apenas aos livros de história.

Qual a relevância de mulheres negras comunicadoras no fortalecimento do povo negro para conceitos como o Afrofuturismo?

Mulheres negras sempre foram a base da civilização africana. Eu acredito que não haverá qualquer levante e estruturação negra sem as mulheres gerindo o processo. Sabemos que a sociedade ocidental se estrutura a partir do racismo como base fundamental, mas que em seu cerne está o patriarcado como ideal de submissão das mulheres negras. Não haverá um futuro para o povo negro sem a emancipação de homens e mulheres negros conquistando equidade.

Qual a relação do Afrofuturismo com o conceito de Contra-Narrativa?

A cultura africana por si só pode ser vista como uma contra-narrativa, acredito eu. De base matriarcal, comunal, xenofílica. O berço civilizatório africano pode ser visto como a antítese do patriarcado, do capitalismo e da xenofobia ocidental. Cheikh Anta Diop vai falar nos seus estudos sobre essa diferença entre os berços civilizatórios. A própria concepção do ser, da comunidade, do humano, do belo, a relação com o outro – tudo isso na cultura africana é completamente diferente da cultura ocidental de base eurocêntrica. Não existe a necessidade de dominação do outro, não existe a necessidade de destruição do diferente. A melhor contra-narrativa é a nossa consciência centralizada em nossa cultura. A partir dessa consciência re-centralizada, podemos recriar o mundo.

Além do conteúdo que você produz, quais outras fontes têm falado sobre o tema, que você pode indicar?

A Kênia Freitas é uma pesquisadora que admiro muito e que veio antes de mim falando sobre essa tema com olhar especial para o cinema e suas narrativas. Tem também oFábio Kabral com a literatura afrofuturista, com um foco de ficção científica, e sua esposa Karolina Desireé, que é educadora, com um olhar pra essa perspectiva voltada para sala de aula. O pianista e cineasta Jonathan Ferr, que produziu A Jornada, um dos filmes mais bonitos dessa década. A Lu Ain-Zaila, que também escreve literatura afrofuturista ficcional. Os Irmãos Carvalho são uma dupla de cineastas que produziram Chico, um filme afrofuturista  incrível sobre a redução da maioridade penal. Tem a Zaika dos Santos, que é uma multiartista que tem produzido coisas incríveis. No exterior, sou fã especial de Ytasha Womack, que me inspirou fortemente a fazer o que eu faço hoje, do Samuel Delany, que é um monstro da criação afrofuturista, do Sun Ra, que me ensinou que podemos ser quem quisermos, da Erykah Badu, que é uma diva futurista, da cantora Jojo Abot, com sua sonoridade tecnoancestral, do músico Baloji e suas referências musicais e visuais belíssimas e, por fim, do queniano Cyrus Kabiru, que é um dos meus artistas visuais favoritos. Poderia citar tanta gente incrível!

Como liberdade de expressão e narrativas sobre futuros se relacionam? Qual a importância de imaginar outras possibilidades de futuros, pensando desde outras posições, neste momento do país?

A liberdade de se expressar está diretamente relacionada com a experimentação de quem podemos ser. É através dessa experimentação que conhecemos mais de nós mesmos. O futuro está diretamente ligado com nossa capacidade de imaginá-lo, de experimentar possibilidades. Antes de algo se tornar real, precisa ser imaginado. Ao contrário do que muitas pessoas acreditam, eu não acredito que estamos vivendo o pior momento de nossa história. Assumir isso seria não só partir de uma perspectiva histórica eurocentrada colonizadora, mas também desrespeitar todo o sofrimento que nossos ancestrais viveram e atravessaram durante séculos de escravização e genocídio. Se essas pessoas que lutaram pra que eu esteja viva hoje puderam enxergar o futuro e criaram estratégias complexas e muito refinadas de sobrevivência em contextos muito mais adversos, quem sou para não honrar esse legado e produzir um futuro no qual acredite? Chegar até aqui é uma vitória coletiva muito grande e em honra a todas essas pessoas invisibilizadas, anônimas, nós seguiremos em direção à construção do futuro que elas sonharam para nós.

A ARTIGO 19 valoriza a liberdade de expressão e multiplicidade de perspectivas e vozes, as opiniões expressas nas entrevistas não necessariamente representam os posicionamentos da organização.

 

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