Entrevista Lívia Teodoro: “a comunicação é um direito de quem faz e também de quem recebe”

Nesta segunda entrevista do especial “Mulheres de Expressão: liberdade de expressão e comunicação”, a ARTIGO 19 falou com a comunicadora e criadora do blog Na Veia da Nêga, Lívia Teodoro, sobre o papel dos influenciadores digitais e os discursos hegemônicos na sociedade.

A conversa faz parte de uma série de entrevistas que começou no dia 25 de julho, quando é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, e estão sendo lançadas semanalmente nos canais de comunicação da  ARTIGO 19 na perspectiva de reunir falas potentes de mulheres negras que discutem discriminações de gênero, raça e classe e outros temas na comunicação.

Leia abaixo a entrevista na íntegra.

Você poderia se apresentar e contar há quanto tempo existe o blog “Na veia da nega” e por que surgiu a ideia de criá-lo? 

Eu sou Lívia Teodoro, tenho 28 anos, sou comunicadora independente, jornalista do blog Na Veia da Nêga e, além do blog, eu estou no Facebook e Instagram fazendo mais o meu ativismo virtual. Sou estudante de história pela Universidade Federal de Minas Gerais, sou designer gráfica e mãe.

O Na Veia da Nêga surgiu em 2015 com a ideia da representatividade negra no ambiente virtual. A internet nos últimos anos tem se tornado cada vez mais um ambiente de disputa de discurso, o que é muito importante. Por isso é de extrema importância que nós, mulheres negras, estejamos presentes nesse lugar também. A gente vê que a internet tem todo o tipo de conteúdo possível e, com isso, torna-se sempre necessário ver a cara de mulheres negras nesses espaços também. A nossa vida e a nossa militância é um conteúdo interessante e merece ter espaço para ser amplamente debatido. Nesse sentido, o Na Veia da Nêga surgiu com essa proposta: ser a representatividade que você não vê na internet. Poder falar da vida, poder falar de maternidade, poder combater discurso de ódio, poder falar de história, feminismo e muitos outros temas pensando no recorte racial e partindo desse lugar de fala.

Foi a sua experiência no ativismo virtual que levou você a criar o projeto “Sou Negra e Quero Falar”? 

O Sou Negra e Quero Falar é um subprojeto dentro de um outro projeto que é o Clube de Blogueiras Negras (CBN). Paralelo ao Na Veia da Nêga, que é um blog de uma mulher negra – no caso, eu, Lívia Teodoro – vi também a necessidade que a sociedade tinha de conhecer mais o trabalho de comunicadoras negras para além do quesito estética.

Observe que nos últimos tempos a gente teve um boom de evolução no trabalho de mulheres negras que falam de cabelo e de novos produtos que o mercado acabou criando para esse público. E é a partir daí que eu vi que existem outros nichos falando de outras coisas e esses outros nichos, às vezes,  ficam para trás por tratarem de assuntos considerados sensíveis. Afinal, as pessoas não querem discutir racismo, as pessoas não querem discutir direitos sexuais e reprodutivos, muito menos na lógica de serem mulheres negras falando sobre o assunto. Eu vi aí a necessidade de criar o CBN. Nele nós trabalhamos para capacitar tecnicamente o protagonismo de produtoras de conteúdo negras que não têm herança.

Já o Sou Negra e Quero Falar é um projeto que nasce do CBN mas pensando especificamente em uma formação para youtubers e blogueiras negras, na qual buscamos trabalhar a capacidade técnica dessas mulheres respeitando o óbvio: o recorte de raça.

Há um crescimento de mulheres negras exercendo sua liberdade de expressão no ambiente digital, onde uma parcela considerável das regras são estabelecidas por empresas distantes das realidades de mulheres negras brasileiras, como o Facebook, o Google, entre outras. Quais são os prós e contras de ocupar esse espaço? Como extrapolar os limites que essas empresas impõem? 

Existe esse discurso de que a gente está aqui para mudar o sistema por dentro. Eu não acredito nisso, eu acho que quanto mais você entra no sistema, mais existe a possibilidade do sistema nos transformar. E tem muito isso de compreender que a partir do momento em que esses espaços passam a ser ocupados por seres humanos diversos, os espaços vão ter que se adaptar e tornar o ambiente democrático para quem está nele. Um exemplo bom é o Google, que é um lugar onde você digita “mulher feia” e aparecem mulheres negras, mas se você digitar “mulheres bonitas” aparecem mulheres brancas.

Isso ressalta a importância de que comunicadores que estão participando de fora e os que estão dentro de empresas como o Google possam cobrar que esses algoritmos sejam treinados de uma outra maneira. Ou, ao menos, que exista a fiscalização de como estes algoritmos estão respondendo aos seus usuários. Isso também se aplica a outras redes sociais, como é o caso do Twitter, Instagram e Facebook. Afinal, nós somos capital, nós também somos dinheiro, o black money está aí e nós movimentamos uma grande parcela de lucro dessas empresas.

Por exemplo, a campanha do Blogueiras Negras “se não me vejo e não me reconheço, não compro” é muito fundamental porque é a partir daí que a gente pressiona as empresas grandes, que na maioria das vezes só sentem no bolso, a fazer com que seja mais diverso o ambiente. Nós estamos longe de romper o sistema hegemônico, e eu não acredito que realmente a gente vá subverter totalmente o sistema algum dia, mas eu acho que essas pressões diárias fazem com que a pluralidade se alarde e que existam outras caixinhas. Aqui eu cito por exemplo a comunidade LGBT. Eu como uma mulher negra e  LGBT só vou consumir de marcas que eu sei que não vão só estampar a minha cara nas suas propagandas, mas que respeitam aquilo que eu vivo e sou.

Você sofre ou já sofreu ataques motivados por exercer sua liberdade de expressão ou profissão?

O tempo todo. Eu acredito que a desumanização provocada pelas redes sociais da figura que está do outro lado faz com que seja muito mais fácil para as pessoas nos tratar de maneira agressiva e, aí, consequentemente, vêm os ataques.

Recentemente nós tivemos um caso de uma influenciadora digital que se suicidou depois de ter sido abandonada pelo noivo e a repercussão nas redes sociais foi extremamente negativa. Afinal, cada pessoa sente de uma forma, né?  Para mim, por exemplo, tratar de direitos sexuais e reprodutivos é levantar muitas discussões. Falar de liberação do aborto no nosso país é mexer em uma caixa de abelhas, principalmente agora nesse momento de extremo conservadorismo. Ter voz ativa  contra o racismo é mexer nessa mesma caixa de temas sensíveis para uma sociedade conservadora. E isso faz com que nós estejamos fadadas a sofrer ataques. Eu já ouvi coisas do tipo “ah, por favor, não se reproduza porque não precisamos de mais pessoas como você”, por tratar de temas relacionados ao racismo e ao sexismo, duas opressões que quando se cruzam me atingem de uma maneira muito mais forte. O fato de eu ser uma mulher negra, LGBT e mãe solo me coloca muito no topo dos degraus de ataques e discurso de ódio.

Qual a importância da multiplicidade de vozes/de diferentes grupos sociais exercerem sua liberdade de expressão? 

A importância está nas duas pontas da comunicação, que é uma via de mão de dupla: de quem fala e de quem recebe. Isso porque receber mulheres comunicadoras é muito fácil, desde que você não se apresente como uma LGBT, como militante do movimento negro, como ativista antirracista. As pessoas precisam se acostumar com a ideia de que nós não vamos falar desses assuntos simplesmente para causar desconforto, mas sim porque é preciso falar para que tenhamos a oportunidade de nos tornar uma sociedade melhor.

É muito positivo que as nossas crianças cresçam vendo caras diferentes na mídia e que elas se sintam representadas. É muito importante que todas as pessoas tenham acesso aos seus direitos e saibam que elas podem falar sobre o que querem e como querem. Porque é assim que a gente fortalece a nossa identidade e é assim que a gente acorda mais disposto todos dias.

E, pensando nessa ótica de quem recebe, a gente tem o direito de ter uma comunicação representativa. É aquilo de ver mulheres que se parecem com a gente, ver vidas que se parecem com a da gente e entender que nem todo mundo está viajando para a Europa, que nem todo mundo está indo esquiar, que nem todo mundo está fazendo passeios de avião ou de helicóptero ou está em ilhas paradisíacas. O que não quer dizer que a vida de mulheres comuns sejam chata, existe muita coisa interessante. Nesse ponto a representatividade de mulheres negras que se parecem com a gente, que trabalham, que têm filhos, que estudam, que têm a nossa cara , que têm o nosso cabelo é muito importante. É isso que fortalece as duas pontas da comunicação. Tanto a de quem faz, tanto a de quem recebe.

A ARTIGO 19 valoriza a liberdade de expressão e multiplicidade de perspectivas e vozes, as opiniões expressas nas entrevistas não necessariamente representam os posicionamentos da organização.

 

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