Lilian Venturini 11 Jul 2016
A cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos do Rio será dia 21 de agosto, mas para organizações não-governamentais o evento não se encerrará ali. Representantes de quatro grupos nacionais e internacionais advertem para o que chamam de um “fardo pesado” que a Olimpíada deixará em razão de violações e irregularidades cometidas durante a preparação do evento.
Para essas ONGs, as obras realizadas e suas implicações, os gastos públicos envolvidos e mudanças na legislação feitas para viabilizar a Olimpíada não só já causaram efeitos negativos para parte da população, como podem agravar problemas sociais já existentes na capital carioca.
Muitas dessas denúncias vêm sendo feitas desde os preparativos da Copa de 2014 e, em 28 de junho, foram apresentadas ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. A relação foi elaborada pelas organizações Conectas Direitos Humanos, Justiça Global (atua na promoção de direitos humanos e fortalecimento da democracia), Artigo 19 Brasil (atua na promoção do direito à liberdade de expressão e do acesso à informação) e ISHR (Serviço Internacional de Direitos Humanos, em tradução livre).
O pronunciamento foi feito a representantes de 47 países-membros do Conselho e de outros países e entidades. Embora o Conselho não tome medidas concretas, a denúncia é vista como uma forma de dar visibilidade ao assunto e chamar a atenção da comunidade internacional para o que as ONGs classificam como “graves violações de direitos humanos”. O Ministério das Relações Exteriores não comentou as manifestações das organizações.
“Queríamos falar sobre o impacto que esses grandes eventos causam à sociedade. Não houve aprendizado por parte dos órgãos públicos desde a Copa. O Brasil é bem visto lá fora, mas ainda convivemos com graves violações. O país acaba sendo poupado de críticas porque as informações não chegam até lá”
O que as ONGs denunciam
Remoção de famílias
Segundo o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, 77.206 pessoas foram removidas das áreas onde foram realizadas obras viárias, de mobilidade ou de equipamentos esportivos para os Jogos. O grupo usa como base os dados apresentados pela prefeitura do Rio, entre 2009 e 2015.
Mario Campagnani, comunicador da Justiça Global e membro do Comitê Popular, afirma que as remoções afetaram sobretudo comunidades pobres e ocorreram em regiões de alto valor imobiliário. Em alguns casos, ao final da obra, a retirada das famílias mostrou-se desnecessária, segundo ele.
“A obra da Transoeste [corredores do BRT, ônibus rápido], por exemplo, levou à remoção de pelo menos duas comunidades inteiras (Recreio 2 e Vila Harmonia). Depois de construída, o traçado dela não passou pelos locais onde as 235 famílias moravam. O que a gente percebe é que as remoções atenderam ao interesse da especulação imobiliária. Ali não era uma área de risco.”
Em nota, a prefeitura afirmou que os reassentamentos e desapropriações feitas nos últimos anos não têm relação direta com a Copa ou com a Olimpíada. A exceção foram as cerca de 550 famílias daVila Autódromo, onde foram feitas as vias de acesso ao Parque Olímpico.
Para a prefeitura, os realocamentos ocorridos por causa das obras de mobilidade (como o VLT e os corredores de BRT) não servem apenas aos Jogos e por isso não vê ligação direta com o evento. Ainda segundo a assessoria de imprensa, as remoções foram realizadas para assegurar a integridade física da população por serem áreas de risco de deslizamento ou de alagamento. O governo do Estado não comentou as críticas.
Também por meio de nota, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do governo do Estado afirmou pautar sua atuação de acordo com critérios articulados com órgãos como o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, a Defensoria Pública. O órgão disse ainda que visa garantir a construção de “canais de diálogo” entre o Estado e a população.
Falta de transparência
A ONG Artigo 19 diz que não há transparência por parte dos órgãos públicos na prestação de contas e de dados sobre os projetos relacionados aos Jogos, como detalhes das despesas das obras em execução e como serão gastos os R$ 2,9 bilhões repassados pela União, quando o Estado decretou “estado de calamidade”.
A crítica é feita com base nas respostas recebidas pela ONG a 16 pedidos de informações feitos a órgãos do município, do Estado e do governo federal, com base na Lei de Acesso à Informação. A maior parte das obras é executada pela prefeitura. Segundo a ONG, as respostas foram evasivas ou mesmo não respondiam às perguntas sob argumento de que era um assunto estratégico e de “caráter reservado”.
Segundo a Artigo 19, a falta de transparência, além de descumprir a legislação (que obriga a prestação desse tipo de informação), dificulta o controle e o envolvimento por parte da sociedade. A prefeitura e o governo do Estado não se manifestaram sobre essa questão.
Militarização das favelas
As ONGs apontam para os riscos de eventuais abusos policiais e judiciais em favelas, já que durante a Olimpíada o Exército assume funções de polícia nas comunidades pobres do Rio. A prática foi adotada também durante a Copa de 2014. Quem desacatar ou resistir a uma ordem dada pelos militares pode ser preso e responder a um processo em um tribunal militar, foro que normalmente só julga crimes cometidos por militares em atividade.
A atuação da Polícia Militar no Rio já é questionada pelas ONGs, que apontam para o uso desproporcional da força e desrespeito de direitos, em especial nas ações policiais nas comunidades. Com o Exército, o temor é que esses efeitos se ampliem, já que as Forças Armadas podem adotar protocolos diferentes de abordagem a civis.
Outra crítica é que nos tribunais militares há menos garantias a civis, como o cumprimento de penas alternativas em casos de crimes de menor gravidade. “É uma verdadeira lei marcial para a população mais pobre”, diz o texto lido ao conselho de ONU.
Lei Antiterrorismo
A sanção da Lei Antiterrorismo como parte da estratégia federal de segurança para os Jogos levará a “restrições de liberdades civis”, de acordo com as ONGs. A lei foi sancionada por Dilma Rousseff, em março. Na avaliação das organizações, o texto abre brechas para criminalização de movimentos sociais e de atos políticos.
A preocupação é por conta de trechos que preveem punição em casos de perturbação da “paz pública” por “razões de ideologia”. Ainda que a lei tenha um artigo segundo o qual o conceito de terrorismo não se aplica a “manifestações políticas, movimentos sociais ou sindicais”, as ONGs acham o texto impreciso.
A ONU também é uma crítica da lei. Em fevereiro, o Escritório para a América do Sul do Alto Comissariado para os Direitos Humanos divulgou nota em que afirma que o texto traz definições “vagas”, que podem levar a retrocessos na política de proteção de direitos humanos e liberdades individuais.
Na época da sanção da lei, representantes do governo Dilma e parlamentares favoráveis ao texto, afirmaram não haver riscos de retrocessos nem violações de direitos.
O que vem depois dos Jogos
Além da denúncia feita ao conselho da ONU, as ONGs preveem atividades no Rio nos próximos dias e antes do início dos Jogos, batizadas de “Jornada de Lutas contra os Jogos da Exclusão”. O objetivo é manter o debate sobre a necessidade de o poder público rever práticas durante a organização de grandes eventos que, para elas, evitariam efeitos como a segregação social e o aumento da desigualdade.
A Justiça Global chama atenção, por exemplo, para o fato de parte dos equipamentos não terem finalidade social após o evento. Mario Campagnani lembra que a Vila dos Atletas, onde os esportistas ficarão hospedados, depois dará lugar a um empreendimento de alto padrão.
Em Londres, sede dos últimos Jogos, a hospedagem foi usada depois para moradias populares. “Nossa crítica não é ao esporte ou ao atleta, mas ao que é feito [na cidade] em nome do evento”, afirma Campagnani.
Após os Jogos, as ONGs também pretendem manter uma agenda de discussões com o poder público e com entidades civis para, entre outras medidas, reverter ao menos parte das remoções das famílias e alterar o texto da Lei Antiterrorismo.