A Classificação Indicativa precisa continuar

por PAULA MARTINS / ARTIGO 19 — publicado 24/05/2016 05h00

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depender da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), o campo dos direitos humanos pode registrar um novo retrocesso em breve. Isso porque o colegiado, composto por onze ministros, pode retomar a qualquer instante a votação da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 2404, movida pelo PTB, e que questiona a constitucionalidade do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente, popularmente conhecido como “ECA”.

O artigo estabelece sanções para a transmissão de conteúdos televisivos em horários não autorizados. Foi principalmente com base nele, mas também em outros artigos do mesmo estatuto e em normas constitucionais, que o governo brasileiro consolidou a política conhecida como “Classificação Indicativa”.

Sua função é regular os horários de exibição de programas da TV aberta segundo o conteúdo, com fins de resguardar a exposição de crianças e adolescentes a cenas consideradas incompatíveis com seu estágio de desenvolvimento, como cenas explícitas de violência, de sexo, uso de drogas etc. A prática não se restringe somente ao Brasil e é recorrente em todo mundo.

Porém, de acordo com os argumentos contidos na ADI, a expressão “em horário diverso do autorizado” não seria permitida pela Constituição, pois estaria em choque com o direito à liberdade de expressão. Segundo os autores da ação, bastaria que fossem informadas as faixas etárias a que não se recomendam certos conteúdos televisivos e só. A iniciativa conta com o apoio amplo das grandes emissoras de TV do País.

A votação teve início em 2011 e já contabiliza quatro votos a favor da derrubada da norma e um contrário. Em novembro de 2015, o processo foi interrompido para pedido de vistas do ministro Teori Zavascki.

No entanto, o tema regressou à pauta do STF do próximo dia 25 e pode ter um desfecho a qualquer momento. Isso porque bastam cinco votos para uma decisão final,  já que dos onze ministros, dois estão impedidos de votar: Gilmar Mendes, por ter apresentado parecer relativo à questão quando era advogado-geral da União, e Ricardo Lewandowski, presidente do STF, que só vota em caso de empate.

Assim, a decisão sobre a ADI terá lugar com nove votos, o que significa que se mais um ministro votar pela inconstitucionalidade da lei o resultado estará selado.

Dois direitos conciliáveis

Não obstante o atual placar na votação, o imbróglio jurídico chama a atenção por trazer ao debate uma clássica situação de suposto conflito entre dois direitos constitucionalmente assegurados – no caso, a proteção aos direitos da criança e adolescente e o direito à liberdade de expressão.

O voto do ministro Edson Fachin, o único até agora a votar pela manutenção da Classificação Indicativa, aborda bem esse dilema. Segundo o magistrado, o direito à ampla liberdade de expressão e o dever de proteção moral das crianças não são incompatíveis e os parâmetros para sua harmonização estão contidos na própria Constituição.

Para Fachin, o artigo 254 é, portanto, constitucional, mas há um problema de interpretação do vocábulo “autorizado” da referida norma. O ministro propõe, assim, que o STF não deve declarar a inconstitucionalidade do artigo, mas sim propor uma interpretação da expressão à luz da Constituição.

A proposta coaduna com as posições da Procuradoria Geral da República e do Ministério Público Federal, que também se manifestaram pela manutenção da norma.

Fachin ainda apontou os exemplos de países como México, Argentina, Chile, Colômbia, Alemanha, França, Canadá e Estados Unidos que, inspirados em padrões internacionais, adotam sistemas de proteção das crianças e adolescentes em relação a conteúdos que possam lhes causar danos.

Há um certo consenso na comunidade internacional, ratificado em sistemas regionais de direitos humanos a partir da interpretação de tratados e convenções, de que medidas que visam a proteção do desenvolvimento infantil, como a Classificação Indicativa, não violam a liberdade de expressão.

A própria Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada pelo Brasil em 1992, estabelece em seu artigo 13.4 que “a lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência”, trecho este citado por Fachin em seu voto.

Mesmo a ONU já defendeu a manutenção da Classificação Indicativa. Durante visita ao Brasil em 2012, o então relator especial para Liberdade de Expressão do organismo, Frank La Rue, lamentou a possibilidade da derrubada da norma, considerada “exemplar” por ele.

Ademais, cabe esclarecer que o modelo de classificação adotado no Brasil foi se aperfeiçoando ao longo dos anos e no atual regulamento há incentivo para que as próprias emissoras apresentem uma autoclassificação e, a partir dela, se adequem às regras da Classificação Indicativa.

Vale ainda lembrar que a política é voltada somente a espetáculos, não incidindo sobre conteúdo de natureza jornalística. Esses dois pontos demonstram a total possibilidade de conciliar o direito à liberdade de expressão com a proteção da infância e adolescência, já que a Classificação Indicativa não restringe a independência, nem afeta em nada a linha editorial dos meios de comunicação.

Sociedade civil lança campanha

O receio da derrubada da Classificação Indicativa tem sido tão grande que uma campanha foi lançada recentemente para chamar a atenção para a causa.

Intitulada “Programa Adulto em Horário Adulto”, a campanha conta com site e perfil no Facebook, e é impulsionada pela ANDI, ARTIGO 19, Intervozes e Alana.

Sua reivindicação é bastante clara e expressa os anseios de setores amplos da sociedade civil: o indeferimento da ADI 2404 pelo STF. Ou então, a exemplo do voto do ministro Fachin, que o artigo 254 do ECA receba interpretação constitucional e siga valendo.

A proteção de crianças e adolescentes face à exposição a conteúdos que possam prejudicar sua saúde e desenvolvimento psíquicos é de interesse de todos nós – e mecanismos como o artigo 254 do ECA, que visam dar efetividade a essa proteção, são essenciais nesse sentido. Por isso, a Classificação Indicativa precisa continuar.

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