Na madrugada de sábado (7), quando moradores da favela de Santo Amaro, zona Sul do Rio de Janeiro, participavam de uma festa junina, uma equipe de 12 homens do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) invadiu o evento com tiros. A ação deixou cinco pessoas feridas e resultou na morte de Herus, um jovem de 24 anos, que foi baleado na barriga enquanto comprava um lanche para sua mãe.
A versão oficial da Polícia Militar alega que a ação foi “emergencial para checar informações sobre a presença de diversos criminosos fortemente armados”, mas vídeos gravados por moradores contrapõem essa versão, evidenciando um festejo pacífico interrompido de forma violenta pela polícia. Herus era um jovem trabalhador que estava em um momento de lazer com sua família na comunidade em que morava.
Esse episódio se insere em um contexto de aumento da criminalização e repressão às expressões culturais de populações marginalizadas, como é o caso do Teatro de Contêiner Mungunzá, em São Paulo, que está com risco de ser despejado. Em 28 de maio, uma notificação foi expedida pela Prefeitura Municipal exigindo a desocupação do espaço em até 15 dias, sob a justificativa de construir um “hub de moradia social” no terreno onde está localizado o equipamento cultural.
O Teatro de Contêiner tem se destacado como um dos poucos e mais relevantes espaços socioculturais dedicados a promover atividades para a população em situação de extrema vulnerabilidade social na região da Cracolândia. O local também é amplamente utilizado por movimentos sociais, defensores de direitos humanos, ativistas e artistas. O prazo se encerrou nesta quinta-feira (12) e, até o momento, a Prefeitura não apresentou nenhuma proposta que atenda às condições necessárias para a continuidade do funcionamento do espaço.
Outro caso também tem trazido preocupação para organizações que atuam na defesa da liberdade de expressão artística: a prisão do MC Poze do Rodo, que passou por um processo de espetacularização na mídia. O cantor foi preso em 29 de maio, sob investigação por apologia ao crime e envolvimento com o tráfico de drogas.
Três dias depois, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aceitou o pedido de Habeas Corpus que aponta ausência de requisitos legais para permanência de Poze na prisão. A decisão do juiz destacou “que a liberdade de expressão é um direito fundamental que garante a todos a possibilidade de se expressar livremente em suas opiniões, ideias, informações, e manifestações culturais e artísticas, sem censura”.
A defesa também aponta que a ligação do MC com integrantes de facção criminosa partiu da estigmatização de seu perfil, um homem negro e favelado. Além disso, a esposa do cantor, a influenciadora Viviane Noronha, após utilizar suas redes sociais para defender e atualizar o público sobre a situação do MC, se tornou alvo de um mandado de busca e apreensão por suposto envolvimento com o crime organizado.
Esses casos ocorreram em meio à disseminação de projetos de lei pelo Brasil conhecidos como “Anti-Oruam” – em referência ao rapper Oruam, artista relacionado aos movimentos de funk e rap do Rio de Janeiro, conhecido também por ser filho de Marcinho VP, um dos grandes traficantes da história da cidade. Pelas homenagens que frequentemente presta ao seu pai em suas músicas e shows, o artista passou a ser perseguido e acusado de fazer apologia ao crime. Tem enfrentado sucessivas tentativas de criminalização, incluindo prisões preventivas.
No Congresso Nacional tramita o PL 243/2025, também replicado em São Paulo com o Projeto de Lei 26/2025 e no Rio de Janeiro o Projeto de Lei 16/2025. Tais projetos pretendem proibir que artistas que mencionem o consumo de drogas, o crime organizado ou a prática de condutas criminosas sejam apoiados pelo governo. Embora se apresente como “medida de segurança”, escancaram uma política seletiva de censura, direcionada principalmente contra manifestações culturais criadas por jovens negros e periféricos, como o funk e o rap.
Essas situações despontam como novos episódios em uma longa linha do tempo de silenciamento das comunidades negras e periféricas do país, que se inicia logo no período da escravização, a partir da criminalização, repressão e perseguição da capoeira, do samba e de comunidades de matriz africana. Podemos lembrar também outras situações recentes que seguiram os mesmos padrões, como a prisão do DJ Rennan da Penha, a tentativa de criminalização dos MCs Cabelinho e Maneirinho e o massacre no baile da DZ7, em Paraisópolis.
Ao atacaras culturas periféricas sob o pretexto de combater o crime, esses casos não apenas silenciam vozes historicamente marginalizadas, mas também violam expressamente o direito à cultura e a liberdade de expressão artística no Brasil. Na publicação “Liberdade artística sob a perspectiva do direito internacional dos direitos humanos”, destacamos que “Por sua natureza, o fazer artístico indaga, confronta e, muitas vezes, incomoda. A comunidade artística é, nesse cenário, alvo de violências, estigmatização e precarização dos seus meios de vida. Protegê-los requer assegurar que aquelas garantias que sustentam o guarda-chuvas de direitos humanos acomodem novos sujeitos, coletivos, reconhecendo o papel imprescindível dos artistas e agentes de cultura no arejamento dos tecidos sociais, e promovendo o direito à arte e à cultura para toda a coletividade”.
Nesse sentido, a ARTIGO 19 Brasil e América do Sul manifesta grande preocupação diante da crescente onda de tentativas de censura, silenciamento e criminalização de artistas que atuam em territórios estigmatizados no país e da cultura popular. É importante salientar que arte e a cultura são peças fundamentais para o exercício pleno da democracia, e negar ou impedir esse direito é uma violação aos direitos humanos. Cabe ao Estado e aos gestores públicos promoverem, e não reprimirem, a livre expressão cultural e artística, bem como a proteção de artistas e ativistas que utilizam manifestações artísticas e culturais como formas de vocalizar denúncias e demandas de interesse público.