Em defesa do atual modelo de governança da internet no Brasil e do Comitê Gestor da Internet (CGI)

A ARTIGO 19 Brasil e América do Sul esteve presente no Fórum da Internet no Brasil (FIB), em Salvador-BA, discutindo diversos assuntos, sobretudo os desafios da governança do atual modelo de governança da internet no país – uma das principais pautas desta edição do Fórum, considerando que o mesmo se encontra ameaçado pelo Projeto de Lei 4557/2024.  

O FIB é um evento preparatório para o Fórum de Governança da Internet (IGF), evento global promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU), e a ARTIGO 19 Brasil e América do Sul, através de seu programa de Ecossistemas de Tecnologias da Informação e Comunicação, participou da mesa “Nada sobre IA sem nós: usando a IA em prol da acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência”. 

O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) foi criado em 1995 para coordenar e integrar as iniciativas de serviços de Internet no Brasil, como a padronização, normatização, administração, atribuição de endereços e gerência de domínios. Além disso, estabelece diretrizes estratégicas e promove pesquisas e estudos sobre as operações da Internet no Brasil. 

Trata-se de um órgão multissetorial e deliberativo, composto por representantes do governo, do setor empresarial, da comunidade científica e tecnológica e do terceiro setor, que atuam de forma colaborativa e paritária. 

Um dos exemplos mais significativos dessa construção colaborativa foi a formulação consensual dos dez princípios para a governança e uso da Internet no Brasil, estabelecidos pela Resolução CGI.br/RES/2009/003/P. Esses princípios orientam decisões políticas, técnicas e operacionais, e foram fundamentais para consolidar um modelo de Internet livre, aberta e democrática. 

Esse modelo de governança gera um ambiente regulatório que preserva a dinâmica da Internet como espaço de colaboração; preserva a estabilidade, a segurança e a funcionalidade globais da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e estímulo ao uso de boas práticas; e promove padrões abertos que permitem a interoperabilidade e a participação de todos no desenvolvimento da Internet. Como resultado, a contínua evolução e a ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso têm sido promovidas. 

Tal estrutura multissetorial e deliberativa tem sido amplamente reconhecida internacionalmente como uma referência em boas práticas para a gestão da internet. Organismos como a ONU, a ICANN (Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números) e o Fórum de Governança da Internet (IGF) já destacaram o arranjo brasileiro como um exemplo bem-sucedido de participação democrática e colaboração entre diferentes setores da sociedade.  

A experiência do CGI.br demonstra que é possível conciliar interesses diversos, promover a inclusão digital e garantir a liberdade, a inovação e os direitos fundamentais no ambiente online, servindo como inspiração para outros países e fóruns globais de governança da internet. 

No entanto, esse modelo está sendo ameaçado em diferentes frentes. Uma das principais é o Projeto de Lei 4557/2024, de autoria do deputado federal Silas Câmara (Republicanos/AM).  

CGI em risco

A proposta pretende reorganizar a governança da internet no Brasil, ao entregar a coordenação e supervisão do CGI para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), assim como também atribuir à agência a execução do registro e manutenção de nomes de domínio, a alocação de endereços IP e a administração relativas ao domínio de primeiro nível. O projeto também pretende alterar a composição do CGI, representando um retrocesso nas atividades realizadas pelo conselho ao longo dos últimos 30 anos. 

Uma das principais narrativas utilizadas para justificar o PL é a necessidade de regulação das redes sociais. No entanto, essa justificativa é equivocada e deslocada, pois “redes sociais” não são sinônimo de Internet, que opera em três camadas distintas: a de infraestrutura (que envolve a conectividade física, como cabos, torres e data centers), a lógica (responsável por protocolos, endereçamento, nomes de domínio etc.) e a de aplicações (justamente onde estão os serviços como redes sociais, plataformas digitais, e aplicativos). 

A Internet é, por natureza, uma rede mundial, interconectada, internacional e descentralizada. A camada lógica — na qual operam os protocolos, padrões técnicos e sistemas de nomes de domínio — é a mesma em todo o mundo. Há órgãos internacionais que discutem essa governança e padronização global. Por isso, a atuação do CGI é voltada à governança da internet no Brasil, e não do Brasil, pois não se trata de uma rede delimitada por fronteiras nacionais.  

Essa distinção é fundamental: a governança multissetorial do CGI.br foi desenhada para refletir a lógica distribuída da própria internet, enquanto a supervisão regulatória da Anatel, por outro lado, se aplica a serviços de telecomunicações dentro dos limites territoriais do país. 

Ou seja, a Anatel tem poder regulatório sobre a camada de infraestrutura, fiscalizando operadoras, gerenciando o espectro e garantindo a qualidade dos serviços de telecomunicações. É uma regulação ampla, com poder normativo e sancionador. Já o CGI.br atua na camada lógica; como já afirmado, garantindo padrões técnicos, interoperabilidade e funcionamento estável da internet no Brasil. 

A terceira camada, na qual operam as redes sociais, portanto, não está sob a alçada nem da Anatel, nem do CGI. Não existe, hoje, um órgão específico de regulação no Brasil responsável por ela. Os efeitos negativos relacionados à atividade das big techs (como ataques a grupos historicamente vulnerabilizados, desinformação, conteúdos golpistas e fraudes) estão diretamente ligados à concentração de mercado, força da extrema direita, algoritmos opacos e modelo de negócio dessas grandes plataformas globais.  

Assim, por sua natureza, voltada à regulação da infraestrutura de telecomunicações, a Anatel não tem expertise nem competência legal para lidar com essas questões. O PL 4557/2024 não apenas enfraquece um modelo consolidado e eficaz de governança da internet no Brasil, como desvia o foco das reais soluções necessárias para lidar com os impactos negativos das redes sociais.  

Também é importante considerar que o desenho institucional da Anatel não prevê a devida participação social em processos de tomada de decisão, ao contrário do que ocorre atualmente na governança da Internet no Brasil, em que, para além de questões estritamente técnicas, também são incorporadas dimensões sociotécnicas e de direitos humanos, imprescindíveis para promover uma Internet orientada pelo interesse público, inclusiva, democrática e comprometida com a proteção de liberdades fundamentais.  

Aperfeiçoar e melhorar esse modelo é possível, o que é muito diferente de promover mudanças que comprometam as bases que o estruturam e reduzam os espaços de participação e diálogo entre os diversos setores da sociedade. 

Além disso, o PL ignora o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), especialmente seu artigo 24, que estabelece como diretriz para a atuação dos entes federados no desenvolvimento da internet no Brasil o estabelecimento de mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica. 

Ao transferir a coordenação e supervisão do CGI.br para a Anatel, o projeto afronta diretamente esse princípio basilar, colocando em risco a participação plural e o equilíbrio que fundamentam o modelo brasileiro de governança da internet — resultado de um processo acumulativo e transparente ao longo de três décadas, construído com amplo debate entre sociedade e governo. Isso contrasta com a tramitação do PL, que carece de participação social e de escuta do próprio CGI. 

Norma 4 em risco: debate sobre a separação entre serviço de telecomunicações e serviços de valor adicionado 

Uma segunda frente de ameaça é a extinção, pelo conselho diretor da Anatel da chamada “Norma 4”, que foi editada pela Portaria 148/1995 do Ministério das Comunicações. Essa norma estabeleceu a separação entre os serviços de telecomunicações propriamente ditos — sujeitos à regulação direta da Anatel — e os chamados serviços de valor adicionado (SVA), categoria na qual se enquadra o acesso à Internet. 

Essa separação, aliás, foi incorporada pela Lei Geral de Telecomunicações (LGT), de 1997. Segundo seu artigo 61, um SVA é “a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações”. O parágrafo 1º acrescenta que um SVA “não constitui serviço de telecomunicações”. 

A separação entre os serviços de telecomunicações e os serviços de valor adicionado, além de criar as bases para a governança feita pelo CGI, também permitiu o desenvolvimento de um ambiente competitivo e descentralizado no setor de Provedores de Serviço de Conexão à Internet.  

Esse cenário demonstra que a separação regulatória entre telecomunicações e SVA, aliada à governança multissetorial da internet, foi fundamental para fomentar a concorrência e a diversidade no setor, permitindo que milhares de provedores regionais florescessem e contribuíssem significativamente para a expansão da conectividade no país. 

Importante ressaltar que a Anatel, conforme a LGT, é uma autarquia implementadora de políticas públicas, sem competência para revogar normas criadas pelo Ministério das Comunicações. Portanto, a agência não possui autoridade legal para suspender ou alterar essa norma, e sua decisão padece de vício de origem. 

Um dos principais argumentos utilizados para justificar a extinção da Norma 4 é de natureza tributária. Com a aprovação da reforma tributária e a consequente substituição do ICMS e do ISS por um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), há quem defenda que não faria mais sentido manter a distinção entre serviços de telecomunicações e serviços de valor adicionado. 

Em primeiro lugar, deve-se considerar que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento de que o ICMS não incide sobre o serviço dos provedores de acesso à Internet. Assim, para fins de divisão do IBS entre os entes federados, esse entendimento deve ser levado em conta. Em segundo lugar, como já afirmado, a própria LGT mantém a separação entre SVA e serviço de telecomunicações.  

Por fim, ainda que se aceite a tese de que a reforma tributária de fato impõe algum problema de ordem fiscal, isso não justifica a adoção de uma medida que compromete profundamente o modelo brasileiro de governança da internet, construído de forma participativa, transparente e bem-sucedida ao longo de três décadas. 

Diante desse cenário, a ARTIGO 19 se posiciona de forma contrária tanto ao PL 4557/2024 quanto à tentativa de revogação da Norma 4 pela Anatel. Ambas as iniciativas representam riscos graves ao modelo democrático, descentralizado e multissetorial de governança da internet no Brasil, construído com participação social ao longo das últimas três décadas.  

 

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