A guinada nas práticas de moderação de conteúdo das plataformas da Meta, anunciada nesta terça-feira (7/1) por Mark Zuckerberg, CEO do conglomerado, representa um reposicionamento político da empresa, e não uma tentativa genuína de defender a liberdade de expressão.
Em sua declaração, Zuckerberg admite que as eleições nos Estados Unidos marcam um “ponto de virada cultural” que motiva a big tech a – supostamente – voltar a priorizar a liberdade de expressão (se é que em algum momento ela realmente a tenha priorizado). O aceno a Donald Trump, novo presidente dos Estados Unidos, é feito explicitamente por Zuckerberg. No entanto, o novo mandatário, que também se autodeclara defensor da liberdade de expressão, está longe de ser um verdadeiro promotor desse direito fundamental.
Durante sua presidência no período de 2017 a 2021, Trump não hesitou em atacar a imprensa independente, rotulando veículos críticos como “inimigos do povo” e buscando descreditar qualquer narrativa contrária à sua agenda. Também pressionou plataformas digitais a censurar conteúdos que o afetavam politicamente, ameaçou regulamentações sobre as redes sociais para silenciar críticas e, em diversas ocasiões, usou sua retórica polarizadora para incitar divisões e violência contra opositores.
A proposta de Zuckerberg de flexibilizar os processos de moderação de conteúdo (que têm problemas, claro está) é o que querem muitos dos aliados de Trump, que acusam a Meta de “censura”. Assim, Zuckerberg parece, por fim, estar defendendo os interesses da extrema direita norte-americana e não a diversidade e a pluralidade de vozes, pilares da liberdade de expressão.
Liberdade de expressão para quem?
Esse “recorte” de liberdade de expressão promovido por Zuckerberg e Trump, ao qual as plataformas estão se alinhando, ignora completamente as vozes de grupos historicamente marginalizados e silenciados. Tais grupos não apenas são constantemente vítimas de discursos de ódio e incitação à violência nesses espaços, mas são também alvo das políticas de moderação e impulsionamento de conteúdo, devido a suas pautas que questionam o status quo e pressionam por mais direitos.
A ênfase em um tipo de liberdade de expressão que privilegia certos grupos — especialmente aqueles alinhados com interesses políticos do momento — e prejudica o exercício da liberdade de expressão por grupos historicamente vulnerabilizados distorce o verdadeiro conceito desse direito humano. O resultado é a promoção de um espaço cada vez mais excludente em detrimento de um debate democrático e inclusivo.
A Meta, assim como outras big techs, têm falhado em suas responsabilidades em relação aos direitos humanos e à liberdade de expressão.
O próprio modelo de negócio dessas empresas, catapultado pela concentração econômica no setor, é um obstáculo à democracia e ao exercício de direitos humanos. Para a ARTIGO 19 Brasil e América do Sul, a afirmação da liberdade de expressão como eixo fundamental para a construção de sociedades mais justas e igualitárias passa pelo debate de uma agenda positiva que possibilite engendrar um ecossistema de tecnologias de informação e comunicação menos concentrado e mais diverso, plural e equitativo.
Modelo de negócio
Não por acaso, Zuckerberg foca na moderação de conteúdo, e não na curadoria de conteúdo, que é um processo mais abrangente e decisivo para o funcionamento das plataformas digitais. A moderação, em seu sentido mais básico, refere-se à remoção ou restrição de conteúdos que violem as diretrizes de uso ou a legislação vigente. Já a curadoria vai além: trata-se do processo de decidir qual conteúdo será promovido, destacado e exibido aos usuários, considerando aspectos como frequência, ordem, prioridade e alcance das publicações.
A curadoria de conteúdo, diretamente vinculada ao modelo de negócio das plataformas digitais, exerce, portanto, um poder significativo sobre o que aparece na tela dos usuários e tem um impacto profundo na construção de opiniões e no direcionamento do debate público. Esse processo, muitas vezes automatizado, também pode ser manipulado para promover ou suprimir determinadas narrativas.
O algoritmo que decide quais publicações serão promovidas é projetado para maximizar o engajamento do usuário, o que, por sua vez, impulsiona o lucro da empresa por meio de publicidade direcionada. Isso cria um ciclo no qual postagens que violam direitos humanos – como conteúdos discriminatórios, incitação à violência contra grupos historicamente marginalizados, desinformação e tentativas deliberadas de subversão do debate público – podem ser priorizadas, pois tendem a gerar mais interações.
Assim, um debate genuíno sobre liberdade de expressão digital deveria considerar não apenas o que é removido ou sinalizado pelas plataformas, mas também o que é priorizado e distribuído por elas. Uma abordagem eficaz voltada à promoção e defesa da liberdade de expressão precisa ser holística, não podendo prescindir da outra faceta, menos visível, do funcionamento das big techs, que é justamente a maneira como certas postagens e narrativas são amplificadas (ou silenciadas) na arena pública.
Transparência e censura nas plataformas digitais
Zuckerberg, em sua declaração, admite que a empresa vinha praticando “censura” – algo que estaria diretamente relacionado aos processos de moderação de conteúdo até então empreendidos pela empresa. Se isso é verdade, o mínimo que se espera é que a empresa seja transparente, oferecendo informações mais detalhadas — tanto quantitativas quanto qualitativas — sobre as postagens removidas.
No entanto, as políticas de transparência da Meta e de outras grandes plataformas continuam sendo amplamente insatisfatórias, o que dificulta não só a responsabilização dessas empresas, mas também um diagnóstico mais preciso sobre o estado da liberdade de expressão no ambiente digital.
Além disso, é curioso que Zuckerberg tenha afirmado que a Europa implementou um número “cada vez maior de leis institucionalizando a censura”. Acreditamos que isso reflete uma compreensão equivocada sobre o papel essencial que regulamentações como o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA) podem desempenhar na proteção dos direitos humanos online. O DMA, em particular, cria um ambiente de igualdade que favorece novos atores e pequenas empresas. Em vez de ver esse tipo de legislação que regula o exercício de suas atividades como um obstáculo à inovação, a Meta deveria reconhecê-la como uma oportunidade para aumentar a confiança e o engajamento dos usuários, priorizando a segurança e a transparência.
Em última instância, as mudanças anunciadas por Zuckerberg não são, como se quer fazer crer, um avanço para a liberdade de expressão, mas sim uma tentativa de desvio das responsabilidades demandadas por diversos setores da sociedade e implementadas por regulações legislativas, como as da Europa e as que tramitam no Brasil. Portanto, é fundamental que a sociedade civil e os usuários continuem vigilantes, exigindo mais transparência e mais responsabilidade das plataformas digitais na construção de um ambiente online que respeite a pluralidade de vozes e esteja em consonância com os direitos humanos.