Se a vontade política é fortalecer a democracia brasileira, devemos partir para a discussão de uma agenda que nos leve a uma internet aberta, diversa e equitativa
Paulo José Lara*
Raísa Ortiz Cetra*
O fortalecimento da democracia brasileira passa pela necessidade de fazer frente ao avanço do autoritarismo promovido pela extrema direita no Brasil e no mundo. Ao mesmo tempo, necessitamos retomar e reafirmar a liberdade de expressão como eixo fundamental para um projeto de país mais justo e igualitário. Isso é possível com o desenvolvimento de uma agenda positiva que possibilite construir um ecossistema de tecnologia, informação e comunicação mais diverso e equitativo, sobretudo para a proteção e promoção das vozes historicamente silenciadas.
O ultraconservadorismo opera usos e modulações das liberdades para disseminar instabilidade política, desestabilizar instituições e propagar violências, colocando em risco a democracia e os direitos humanos. Essas operações se valem também da exploração do modelo concentrado imposto pelas Big Techs à Internet e ao universo digital. Em momentos de crise e rupturas democráticas, grandes empresas de tecnologia e conglomerados midiáticos foram ferramentas e agentes de instabilidade política, apoiando e sustentando ditaduras na América Latina. As lutas pelo restabelecimento e fortalecimento das democracias têm que passar pelo contínuo apoio aos meios de comunicação livres, diversos e independentes, e pela crítica ao modelo oligopolista – tarefa que ainda está pendente no Brasil.
O século 21 viu o poder de empresas de mídias digitais se espalharem pelo ambiente online através da conversão da Internet em um grande ambiente de negócios, explorando a economia da atenção e dos dados. A obtenção de lucros gigantescos se dá a partir da exploração da produção artística, jornalística, cultural e informativa de milhões de usuários da rede. As grandes plataformas de redes sociais, em maior ou menor grau, apropriam-se de valores e direcionam o debate público e o rumo político dos países.
É sob essa ótica que o embate entre a plataforma X e o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro deve ser encarado. A empresa de Elon Musk vem reiteradamente e, erroneamente, em nome da liberdade de expressão, descumprindo ordens da Justiça brasileira, desrespeitando suas autoridades e zombando de representantes políticos sem se importar com o interesse público ou com a garantia e exercício dos direitos humanos pela população.
Por isso, é urgente regulamentar as plataformas de redes sociais de modo que operem dentro do jogo democrático e respeitem os direitos humanos, como qualquer outro empreendimento econômico que explore recursos em territórios soberanos onde atuam. A decisão do STF de exigir o cumprimento de suas decisões e sancionar o X por não fazê-lo poderia representar um passo importante no enfrentamento a um braço do poder político e econômico que pode causar danos sociais, jurídicos, materiais e psicológicos por meio de seu modelo de negócios e influência.
Entretanto, ainda que a decisão de Alexandre de Moraes tenha respaldo legal e responda a um contexto político, deve-se questionar sobre o impacto, a proporcionalidade, a necessidade e o alcance da decisão de suspender o serviço do X no Brasil e aplicar multas significativas para usuários que o acessem via Virtual Private Networks (VPN). O Direito Internacional dos Direitos Humanos limita de maneira clara as possibilidades de restrição à liberdade de expressão – sua garantia deve ser a regra e suas limitações devem ser exceção. Assim, qualquer restrição deve estar prevista em lei, perseguir um fim legítimo e ser proporcional e necessária para assim garantir o funcionamento democrático. Ainda, as ameaças devem ser concretas e jamais podem estar baseadas em circunstâncias hipotéticas. Assim, a própria base legal da decisão deve ser interpretada e aplicada segundo tais parâmetros para a construção de uma jurisprudência sólida em direitos humanos.
Nesse sentido, devemos nos perguntar sobre o objeto e o objetivo de proteção da decisão de Alexandre de Moraes. Para além da suspensão temporária do serviço por ausência de representação legal do X no Brasil e descumprimento de ordens da justiça, é essencial entender a necessidade e o que a decisão remedia. Entretanto, essa tarefa se torna complexa em termos de controle social, já que os inquéritos relacionados ao caso correm em sigilo, com obstáculos significativos de transparência. Não apenas é difícil analisar a materialidade das ameaças, mas também se a construção jurídica respeita parâmetros mínimos de proteção à liberdade de expressão.
Ainda assim é possível levantar perguntas para analisar a decisão. Há urgência em suspender a comunicação de investigados especificamente da plataforma em questão? Isso trará efeitos para remediar as ameaças que representam? A ameaça justifica, em termos proporcionais, a retirada da capacidade de comunicação de todos os usuários da plataforma?
Em relação aos potenciais riscos de ruptura democrática, é importante reconhecer que qualquer articulação política nesse sentido não estaria resumida à comunicação em uma plataforma digital. E, portanto, haveria outros meios para se interromper esse processo em curso, salvo que fosse provada a sua iminência. Por outro lado, a responsabilização dos atores envolvidos nos riscos passados e presentes é, sem dúvida, necessária sempre e quando as medidas tomadas respeitarem os parâmetros internacionais. Afinal, a questão é sobre a medida efetiva menos danosa para o cumprimento da finalidade legítima da ação e para a garantia dos direitos e da democracia para a população brasileira.
Diante desses questionamentos, a medida de interrupção geral do serviço da plataforma X se mostra extrema e não parece responder de maneira proporcional ao objetivo pretendido. Aqueles que já operavam ilegalidades e tentativas golpistas por meio da plataforma têm meios tecnológicos, financeiros e políticos para continuarem atuando em outros espaços. O dano recai para milhares de usuários que tinham na plataforma um meio de se expressar e obter informações.
A decisão do Judiciário brasileiro pode, inclusive, agravar o cenário problemático do mercado de plataformas de redes sociais. A atual dependência e falta de diversidade dessa forma de comunicação digital é um problema que demanda uma multiplicidade de ações. Desde o conhecimento sobre o ecossistema de tecnologias até a adoção de padrões e soluções tecnológicas e o desenvolvimento de meios alternativos de comunicação. Sem dialogar com estratégias políticas, institucionais e parâmetros jurisprudenciais assentados no direito internacional dos direitos humanos, o Judiciário terá dificuldade de debater e deliberar sobre o tema – e tudo se converte em um falso duelo de titãs sem perspectiva de resolução.
A melhor saída para superar essa falsa dicotomia que gera o bloqueio do debate político é avançar em uma maior transparência e prestação de contas por parte do Judiciário; desenvolver parâmetros jurisprudenciais sólidos no Brasil para a proteção da liberdade de expressão; promover diálogos multissetoriais para a adoção de legislações que regulem a atuação e o modelo de negócios das plataformas no país e adotar políticas públicas que busquem a democratização da comunicação.
Há que se retomar uma agenda para o desenvolvimento de uma Internet de fato descentralizada, interoperável, multicultural e diversa. Sem a consciência sobre o que a Internet pode ser, ficamos reféns do que ela se tornou: um universo controlado por poucos atores econômicos onde as expressões são formatadas de acordo com lógicas algorítmicas de interesse privado, e a política e a democracia são pressionadas por atores desinteressados no desenvolvimento de uma sociedade justa e democrática.
* Paulo Lara e Raísa Cetra são codiretores executivos da Associação ARTIGO 19 Brasil