Fenômeno segue vigente no Brasil, e o caso do V Festival Transforma é um grave exemplo
Relatos recentes denunciam a censura e a intimidação contra artistas e produtores culturais catarinenses a partir de decisão da administração municipal de Rio do Sul (SC) em impedir que a II Mostra Itinerante do V Festival Transforma e suas atividades conexas ocorressem nos equipamentos culturais públicos da cidade. O Transforma é um festival de cinema catarinense cuja temática LGBTQIAPN+ é a base da curadoria, e a mostra itinerante seria realizada nos dias 27 e 28 de março na cidade. Seu cancelamento de forma unilateral pelo executivo municipal mostra como os governos locais seguem sendo agentes de violações contra a liberdade de expressão artística e cultural no País a partir de pautas conservadoras e morais.
Sob a alegação de “respeito aos princípios cristãos, daquilo que está escrito na bíblia, e dos princípios da família”, o prefeito José Thomé proibiu a realização da mostra. “Não admito que o poder público seja o incentivador desse tipo de prática”, ele afirma em um vídeo publicado em seu perfil da rede social Instagram no dia 27 de março. E ainda convoca os demais prefeitos dos municípios catarinenses pelos quais a mostra passará a fazer o mesmo: “não permitam que isso ocorra”.
“Esse discurso de ódio do prefeito levou pra um lugar que a gente não imaginava, que era sentir medo de realizar as ações na cidade”, diz Arthur Gomes, ator, produtor cultural e um dos organizadores do V Festival Transforma, ao anunciar o cancelamento das atividades da mostra em Rio do Sul. É alarmante a expressão do medo dos artistas e produtores culturais frente às ameaças, exigindo de autoridades competentes uma resposta célere a fim de se garantir o exercício do direito à liberdade de expressão dos indivíduos afetados e das comunidades das quais são parte. Nesse caso em particular, a comunidade LGBTQIAPN+ é que está sob ataque em nível local, o que não é, infelizmente, um fato isolado.
Segundo o Mapa da Censura, plataforma que reúne informações sobre restrição à liberdade artística no Brasil mantida pelo Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística (MOBILE), do qual a ARTIGO 19 faz parte, entre 2016 e 2022, foram contabilizados 34 casos de censura a conteúdos identitários na esfera local (distrital, municipal e estadual), sendo mais da metade vinculados a pautas de orientação sexual e identidade de gênero. O nível local representa 40% do total de casos com essas características e é, portanto, um espaço privilegiado do fenômeno.
Ou seja, esse não é um caso isolado. Por exemplo, em 2021, em Itajaí (SC), a transmissão da live “Roda Bixa”, que promoveria o podcast “Criança Viada Show”, foi suspensa pela prefeitura sob alegação de que os termos “criança viada” confrontariam o Estatuto da Criança e do Adolescente. “Eles usam outro nome, dizem que é uma suspensão. É uma prefeitura que não quis bancar a autonomia de uma gestão cultural, que é de referência no estado. Também é moralismo e distorção dos fatos”, disse Daniel Olivetto, ator, diretor e autor do live, à Folha de S. Paulo na época.
E, mais recentemente, um caso de ampla repercussão foi o da tentativa de censura ao livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, criticado por Janaína Venzon, uma diretora de escola estadual na cidade de Santa Cruz do Sul (RS), por conter, segundo ela, “vocabulários de tão baixo nível para serem trabalhados com estudantes do ensino médio”. Além da crítica, ela pediu a retirada do título das instituições de ensino da cidade. O livro de Tenório apresenta, por meio da história do personagem Pedro, entre outros temas, a complexidade das relações raciais e do racismo no Brasil.
O MOBILE se solidariza e oferece o apoio necessário aos artistas e produtores culturais afetados pela censura e pela LGBQIAPN+fobia em Rio do Sul neste momento. Um dos pilares fundamentais de uma sociedade democrática e plural, a liberdade artística possibilita a diversidade cultural e a expressão da criatividade de vozes individuais, ecoando coletiva e diversamente sobre o todo da sociedade. Assim, os governos locais devem também proteger e promover o livre exercício artístico, e não praticar ações contrárias a ele. As autoridades em todos os níveis da federação devem garantir ambientes seguros para as diversas expressões culturais que há em nosso território.