O estado da democracia nas ruas e nas redes, dez anos depois do ‘Junho de 2013′

A ARTIGO 19 realizou nesta terça e quarta-feira, dias 4 de 5 de julho, em São Paulo, um encontro com a participação de quase 40 ativistas de direitos humanos e pesquisadores para discutir as chamadas “Jornadas de Junho”. O encontro, fechado à participação externa, serviu para a livre troca de experiências e de impressões sobre os fatos ocorridos em 2013 e seus reflexos na democracia e nos direitos humanos ao longo dos últimos dez anos.

Ao longo dos dois dias, os participantes tiveram a chance de compartilhar suas visões e análises a respeito do que foi a onda de protestos iniciadas em junho de 2013 e também de expor suas leituras a respeito das motivações e consequências desse movimento. A maior ênfase foi dada à repressão do Estado sobre as manifestações populares, e como essa repressão se transformou ao longo dos últimos dez anos. Os participantes também analisaram as questões políticas e sociais que motivaram o início dessas manifestações no Brasil e de que maneira elas ecoam nas questões atuais.

Na abertura do evento, Denise Dora, diretora executiva da ARTIGO 19 Brasil e América Latina, lembrou que “não existe sociedade democrática que tenha avançado sem que tenha havido protestos, manifestações, livre expressão do pensamento. A história do Brasil é repleta de exemplos disso”, disse na acolhida aos participantes, ao lado de Annette von Schönfeld, da Heinrich Böll Stiftung, uma das apoiadoras do encontro.

O evento faz parte do calendário de ações da Campanha #LivreparaProtestar, uma mobilização internacional dos escritórios da ARTIGO 19 que busca discutir a importância da efetivação do direito de protesto e alertar sobre as restrições que vêm avançando no mundo em relação a manifestações, destacando sua relação com a liberdade de expressão, democracia e a conquista ou defesa de outros direitos.

 

Primeiro dia das discussões

A primeira mesa do evento, chamada “Junho de 2013: Memória e Legado”, foi mediada por Manoel Alves, assessor do Programa de Proteção e Participação da ARTIGO 19 Brasil e América do Sul, que falou da importância de revisitar os episódios daquele ano e de trocar impressões livremente sobre as causas e movimentos que estavam nas ruas.

Uma das expositoras da mesa foi a antropóloga Alana Moraes, organizadora de dois livros sobre o tema: “Junho potências das ruas e das redes” e “Cartografias da emergência: novas lutas no Brasil”, além de ser membro da Lavits – Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade. Moraes considerou impreciso falar em “Jornadas de Junho” como um evento único, coeso e uniforme, porque “há muitos junhos dentro de Junho”, no que ela chamou de uma “ecologia de diferentes ações” caracterizadas pela ausência de liderança definida e pelo rechaço em negociar.

“Naquele momento, o PT se orgulhava do número de conferências realizadas pelo país, como se aquilo fosse a prova de uma democracia pronta e consolidada. O governo mostrava o PIB (Produto Interno Bruto) em alta, a queda do desemprego e os megaeventos como Copa e Olimpíada como sinais de democracia, estabilidade e desenvolvimento, mas começaram a aparecer outros incômodos, que tinham a ver com a vida. O projeto de desenvolvimento e de democracia que estava sendo apresentado não tornava a vida das pessoas melhor. A vida nas cidades era bastante degradada e pouco digna”, disse Alana Moraes.

O terceiro participante da mesa, Rafael de Souza, da Universidade Federal Fluminense e membro do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), coincidiu com a avaliação de que “Junho foi a culminância de várias causas” e não um movimento único e uniforme.

Ele destacou o fato de que essas manifestações foram uma forma de “questionamento da centralização das esferas decisórias”na política e também reforçaram “o papel das periferias no processo, com uma série de mobilizações que vinham e vem ocorrendo há muito tempo”.

Souza notou que, em junho de 2013, “as pessoas comuns foram às ruas, pessoas que não participaram do movimento estudantil, de movimentos de base. Houve um processo de aprendizado sobre como se fazer política para além da rotina burocrática tradicional”.

A segunda mesa do primeiro dia, 4 de julho, foi chamada “Violações e Testemunhos” e destacou dois casos concretos: o do fotojornalista Sergio Silva, que perdeu a visão por causa de um disparo de bala de borracha efetuado pela Polícia Militar em junho de 2013; e de Rafael Braga, que foi preso pela polícia nos protestos de 2013 por trazer consigo uma garrafa de desinfetante.

A mediadora Raísa Cetra, coordenadora do Programa de Proteção e Participação da ARTIGO 19, introduziu o debate, sublinhando que a intenção da mesa foi de “colocar as pessoas que estavam nas ruas (em 2013) na centralidade da conversa”. Cetra remarcou a importância de olhar para “os impactos individuais, coletivos e subjetivos que a escalada repressiva”, protagonizada pelo Estado, provocou “nos indivíduos que protagonizaram esses eventos”.

Na sequência, Sofia Rolim, pesquisadora da FGV (Fundação Getúlio Vargas) que investiga processos de criminalização de movimentos sociais no Brasil, chamou a atenção para a facilidade com que os “depoimentos de policiais envolvidos nas ocorrências são tomados como verdade” nos casos que envolvem repressão a protestos e a manifestantes.

De acordo com ela, os policiais “apresentam ao Ministério Público e aos juízes narrativas ficcionais, construídas a partir da captura de fragmentos de comunicação e de conjecturas feitas a partir de retalhos de testemunhas”. Ela classificou essa dinâmica como “um processo altamente especulativo, cheia de elementos ficcionais”. Rolim disse que “esses processos são permeados de absurdos jurídicos e de uma série de ilegalidades. Apesar disso, são processos fundamentalmente legais, porque a lei permite esse tipo de provas para condenar uma pessoa. Esse é o absurdo da história.” A consequência, de acordo com ela, é que “a violência policial, a violência de Estado, serve para desmobilizar os movimentos sociais”.

Em seguida, a advogada Gabrielle Nascimento comentou o caso de Rafael Braga, um catador de latinhas que foi preso em 20 de junho de 2013, acusado de portar explosivos, quando carregava consigo apenas uma garrafa de desinfetante. Nascimento é uma das lideranças de uma campanha nacional pela libertação de Braga.

A advogada contou que em 2015, Rafael Braga saiu do regime fechado para o regime aberto. Um mês depois, foi preso novamente, num flagrante por porte de pequenas quantidades de maconha e de cocaína. Desta segunda vez, Braga foi condenado em abril de 2017 a 11 anos e 3 meses de prisão. Nesta segunda prisão, contraiu tuberculose no sistema prisional, foi para o regime aberto e cumpre pena em prisão domiciliar até hoje, com monitoramento eletrônico.

“O que aconteceu com Rafael não é um caso, é um projeto”, disse a advogada. “Imaginem que, dos 25 aos 35 anos, ele passou a vida atravessado pela violência do sistema carcerário.”

 

Segundo dia das discussões

O segundo e último dia dos debates – quarta-feira, dia 5 de junho – teve início com a mesa chamada “Levantes Populares, Tecnologias e o Avanço do Autoritarismo”. A mediadora da mesa, Dandara Rudsan, assessora do Programa de Proteção e Participação da ARTIGO 19, chamou a atenção para o avanço da repressão estatal no ambiente tecnológico e comunicacional, mas ressalvou que “os levantes populares também produziram novas tecnologias de proteção dentro dos próprios movimentos sociais”. De acordo com ela, “foi desenvolvida uma tecnologia ou uma contra-tecnologia para autodefesa” desses movimentos, de 2013 para cá.

A percepção de Rudsan foi compartilhada por Joluzia Batista, do Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), que notou que “o movimento feminista também aprendeu a fazer a luta feminista dentro das redes sociais” ao longo dos últimos anos. Especificamente sobre 2013, Joluzia citou exemplo de que “o direito ao aborto é um tema que não estava posto nas ruas como tal, embora o movimento feminista também já estivesse desenvolvendo sua luta”.

Na sequência, Augusto Jobim, professor de direito da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), falou sobre como o uso de novas tecnologias, como as redes sociais e a inteligência artificial, traz consigo a imposição de linguagens, valores e práticas que colidem com os interesses dos movimentos sociais e suas pautas de transformação. “As práticas de algoritimização de nossas vidas é uma plataforma de automação de nossas vidas. A temporalidade da política não é apenas o ritmo das redes, não é a dinâmica do puro engajamento, da tensão. Ao contrário, a temporalidade política é a temporalidade do afeto, e o afeto é algo que empurra a gente para a transformação.”

Para Jobim, as novas tecnologias não devem ser vistas como ferramentas neutras, mas como lógicas que, por sua criação, sua existência e seu uso, terminam por influenciar também a própria pauta do debate público, a forma como esse debate ocorre e quem tem prevalência nesse espaço.

Maria Julia Miranda, defensora pública do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, focou sua análise em pelo menos três estratégias de perseguição da Justiça contra os movimentos sociais e os ativistas no Brasil: a lei de organizações criminosas, a lei antiterrorismo e a tipificação do crime de desacato, além da ausência de uma regulamentação adequada sobre o uso de armamento menos letal por parte das forças policiais.

Por último, o deputado estadual gaúcho Matheus Gomes, do PSOL, relatou que, em seu estado, o Rio Grande do Sul, houve um deslocamento de policiais e investigadores especialistas em organizações criminosas para núcleos responsáveis por investigar movimentos sociais. Somado a isso, Gomes, notou o aumento do uso da linguagem que reduz os protestos e manifestações a coisas de “turba”, o que criou, no jornalismo, uma forma perversa de criminalizar e estigmatizar os movimentos, que se alastrou pelo debate público em toda a sociedade brasileira.

A última mesa do evento teve como tema “Desafios Democráticos: Oportunidades e Obstáculos para a Mobilização Social”. A mediadora Marilene de Paula (coordenadora de programa da Heinrich Böll) lançou aos participantes da mesa o desafio de refletir sobre o que o atual governo, do presidente Luis Inácio Lula da Silva, deveria fazer hoje para evitar que se repita a lógica de repressão contra os movimentos sociais verificada em 2013, durante o governo Dilma.

Marilene relembrou que “o bolsonarismo não acabou e tem suas repercussões na sociedade e no trabalho da maioria dos movimentos sociais representados no encontro”. Ela também chamou a atenção para o que chamou de “um processo de militarização que não é só da polícia e do Exército, mas que é também do controle da ordem. É um processo de militarização que, de forma muito perversa nos últimos anos, tem implicações nos protestos e na organização política e popular das pessoas”.

Wagner Moreira, da Coalizão Negra por Direitos, focou sua intervenção na invisibilidade dos negros como protagonistas de movimentos, protestos, manifestações e revoluções ao longo da história do Brasil. Moreira citou tanto eventos históricos do passado, quanto a luta pela independência, na Bahia, quanto os eventos contemporâneos, incluindo junho de 2013.

Um dos últimos expositores foi Thiago Aparecido Trindade, do Demodê (Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades) e da UnB (Universidade de Brasília), onde pesquisa crise da democracia e conflitos urbanos. Trindade disse que o bolsonarismo fez com que os movimentos sociais recuassem de suas pautas e se intimidassem com a acusação de que têm uma atuação “radical”.

Para o professor, os movimentos precisam justamente focar suas atuações na radicalidade das questões, considerando a origem da palavra “radical”, que diz respeito à origem, à raiz dos problemas. Trindade disse que é preciso focar todas as forças para derrubar a lei antiterrorismo e lei de organizações criminosas no Brasil.

Por fim, Gláucia Marinho, da Justiça Global, colocou em questão a própria ideia de que o Brasil seja uma democracia para todos e de que as lutas travadas em 2013 e agora, nas ruas, afetam a todos igualmente. “Que democracia é essa que nunca chegou na periferia, nos subúrbios, nas regiões rurais do país? Há regiões inteiras que estão sitiadas. Algumas favelas no Brasil são prisões a céu aberto, com helicópteros e blindados disparando contra as pessoas. Essa população nunca teve acesso aos direitos básicos. Que ideia de democracia é essa, da qual tanto estamos falando?”

A ARTIGO 19, que promoveu os dois dias de evento sobre as “Jornadas de Junho”, é uma organização não-governamental de direitos humanos nascida em 1987, em Londres, com a missão de defender e promover o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação em todo o mundo. Seu nome tem origem no 19º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Com escritórios em nove países, a ARTIGO 19 está no Brasil desde 2007, onde adota estratégias, ações e parcerias diversas e nos mais variados aspectos desta agenda. O escritório baseado em São Paulo trabalha defende e promove a liberdade de expressão e informação e sua importância para a conquista e concretização de outros direitos fundamentais no Brasil e América do Sul.

Icone de voltar ao topo