Recentemente, um tema tem aparecido com centralidade nos debates sobre liberdade de expressão e imprensa no Brasil: o assédio judicial contra jornalistas ou, como conhecido em outros países, SLAPPs (Strategic Lawsuit Against Public Participation – em português, “Processo Estratégico Contra a Participação Pública”). O Assédio Judicial pode ser caracterizado pela mobilização do Poder Judiciário para intimidar e silenciar pessoas que se manifestam na esfera pública. Defensores de direitos humanos, jornalistas e comunicadores são, portanto, alvos preferenciais dessa violação que atinge a liberdade de expressão de forma latente.
O debate não é novo: em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 (ADPF 130) e decidiu pela incompatibilidade da Lei de Imprensa com a Constituição Federal de 1988. A propositura dessa ação foi originalmente motivada pelo caso da jornalista Elvira Lobato, que após publicar uma reportagem sobre a Igreja Universal, se viu obrigada a responder a mais de 100 ações judiciais que visavam a silenciar e impedir sua expressão, num exemplo claro do que foi posteriormente denominado de assédio judicial (1).
A estratégia é permeada de circunstâncias que vulnerabilizam o acesso à justiça, a condição econômica, a saúde mental e a possibilidade de se comunicar. Por um lado, vemos diversos processos sendo movidos contra o mesmo jornalista, em diferentes comarcas e estados, de modo a impossibilitar a defesa técnica comum em todos os territórios e gerar grave ônus financeiro. Por outro, constantemente assistimos aos acusados e processados ficarem sem acesso à justiça de fato, uma vez que não possuem recursos ou meios para alcançar a assessoria jurídica adequada. De modo geral, pode-se dizer que o assédio judicial é uma forma de violação à liberdade de expressão marcada pela desigualdade financeira, técnica e de outros tantos recursos, de maneira que as partes não encontram as mesmas possibilidades de manifestação e reivindicação de seus direitos. Completa ausência, portanto, da paridade de armas no processo.
Não só o uso dos processos contra jornalistas, comunicadores e defensores de direitos humanos é preocupante. Devem ser também de atenção profunda as condenações contra estes sujeitos. Um forte marcador são as condenações pecuniárias, que somadas às despesas processuais, muitas vezes terminam por inviabilizar completamente a continuidade das atividades de ativismo, comunicação e participação pública. Lembra-se, aqui, do caso de Elmar Bones, jornalista sul-rio-riograndense que teve a atividade de seu veículo paralisada pelo valor elevado de condenação em processo motivado por matéria que relatava circunstâncias da morte de empresário pertencente a uma família tradicional da política do estado do Rio Grande do Sul, em 2001. O caso de Elmar foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela ARTIGO 19 em 2013, e hoje, com 79 anos, ainda se vê com a impossibilidade de seguir o trabalho como jornalista em razão do impacto financeiro e reputacional da condenação. (2)
O cenário se agrava com o crescimento do número de denúncias a esse respeito. Também porque o medo de ser processado passa a ser marcante na manifestação pública, através do que é conhecido no exterior como “chilling effect” (“efeito inibidor”, em português). Assim, cotidianamente, pessoas têm deixado de expressar-se livremente em razão da possibilidade de serem acionadas no Poder Judiciário, e de alguma forma responsabilizadas.
Importante frisar que, em se tratando de violências que permeiam as esferas institucionais, há um forte componente de desigualdades estruturais na forma como se dão os processos intimidatórios e as condenações abusivas. Como foi no caso de Elvira Lobato, têm se feito uso especial do judiciário e das esferas investigativas para silenciar mulheres – principalmente, quando estas têm pautado temas relacionados aos direitos das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos e episódios de violência doméstica e sexual. São alguns exemplos a perseguição dos veículos The Intercept Brasil e Portal Catarinas, através da CPI do Aborto promovida pela Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, denunciada à CIDH e à ONU em outubro de 2022 (3); e o processo criminal movido contra a jornalista Schirlei Alves, pela matéria que denunciou a própria misoginia no Judiciário no caso Mariana Ferrer (4). Também não é demais destacar que mulheres e homens negros e indígenas são especialmente constrangidos no Sistema de Justiça, o que não é diferente na estratégia de acionamento deste para o sufocamento do discurso público.
Por outro lado, tentativas de acionar o judiciário para coibir práticas discriminatórias e de ódio têm sido frustradas pela indisponibilidade política das autoridades de reconhecerem estas formas de violência. Também de forma diametralmente oposta, o animus de criminalização e responsabilização de Magistrados, Desembargadores e Ministros não tem se dado da mesma forma nas tentativas de responsabilizar aqueles que violam direitos e agridem, nas mais diversas esferas, comunicadores e defensores de direitos. Tanto é que restam impunes diversos casos de violências extremas praticadas contra estes últimos.
Na tramitação dos processos movidos na intenção de silenciar, também não parece haver, em comarcas e tribunais, disponibilidade política no reconhecimento do uso abusivo do direito de ação para constranger posicionamentos públicos, cercear o espaço cívico e inibir, prévia ou posteriormente, o exercício da liberdade de expressão, direito constitucionalmente protegido. Mais grave ainda quando observam-se processos como estes emanando dos próprios agentes do Poder Judiciário e de outros agentes políticos. Importante memorar, nesse sentido, que os últimos 4 anos foram marcados pela reiterada provocação do Judiciário por agentes políticos, como forma de intimidar discursos dissidentes e críticos a sua atuação e posicionamento – como, por exemplo, nos casos do uso da agora revogada Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/83) contra aqueles que ousaram classificar a atuação do Governo Federal durante a pandemia de COVID-19 como “genocida”, bem como tantos outros retratados em pesquisas e monitoramentos realizados pela sociedade civil no período. (5)
Visando proteger o Estado Democrático de Direito brasileiro e os direitos que o fundamentam, deve-se observar com atenção o aumento expressivo no número de casos de assédio judicial no país, bem como o prolongamento dessa forma de violação no tempo, e seus impactos. Assim, há que se resgatar marcos já existentes para a proteção da liberdade de expressão – como a Recomendação n. 127/2022 do CNJ – e dar efetividade a eles, como também ampliar possibilidades legislativas e de interpretação jurídica acerca do tema.
REFERÊNCIAS
(1) Ivan Finotti. Elvira Lobato revelou poço para teste de bomba atômica e império da Igreja Universal. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2020/07/elvira-lobato-revelou-poco-para-teste-de-bomba-atomica-e-imperio-da-igreja-universal.shtml
(2) https://centro.artigo19.org/caso/denuncia-a-cidh-do-caso-do-jornalista-elmar-bones/
(5) https://artigo19.org/2021/12/16/artigo-a-institucionalizacao-da-violencia-contra-comunicadores-no-brasil/ e https://www.abraji.org.br/deputada-bia-kicis-move-ao-menos-11-acoes-judiciais-contra-jornalistas-e-comunicadores