Posicionamento da ARTIGO 19 sobre regulação das plataformas digitais em audiência pública sobre o Marco Civil da Internet no STF – 28/03/2023

Raquel da Cruz Lima, coordenadora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19, em audiência pública sobre o Marco Civil da Internet, realizada em 28 de março de 2023, ressaltou nossa posição sobre a necessidade de enfrentamento da desinformação e do discurso de ódio na internet. O evento foi promovido pelo Supremo Tribunal Federal, em Brasília (DF).

No vídeo, Raquel descreve o estado atual da questão à luz do Direito Internacional e apresenta argumentos por uma mudança de olhar, para que o debate sobre o tema ocorra em torno dos “sistemas e processos que têm permitido o desenvolvimento de negócios extremamente concentrados, que lucram a partir da amplificação de conteúdos extremistas, desinformativos e ofensivos a grupos vulnerabilizados” – salienta a especialista.

Dá o play no vídeo para conhecer os fundamentos de nossa incidência nesse campo! E você também pode ler na íntegra o documento que baseou nossa fala na audiência pública logo abaixo.

#marcocivildainternet #combateàdesinformação #liberdadedeexpressão


 

Texto integral da apresentação que a ARTIGO 19 fez sobre seu posicionamento em relação à regulação das plataformas – audiência pública sobre o Marco Civil da Internet, realizada pelo Supremo Tribunal Federal, em 28 de março de 2023, em Brasília (DF).

“Saudações!

Represento a ARTIGO 19 BRASIL, uma organização não governamental de direitos humanos que foi fundada em Londres, em 1987, inspirada no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual prevê o direito de todo ser humano à liberdade de opinião e expressão e o acesso à informação. No Brasil, a ARTIGO 19 atua há 15 anos, e é com base no seu histórico de pesquisa e incidência que, nesta audiência pública, iremos abordar dois pontos: o primeiro, os critérios para restringir a liberdade de expressão; e o segundo, sobre a necessidade de realocar o âmbito no qual têm sido feitos os debates sobre o enfrentamento da desinformação e de conteúdos discriminatórios e antidemocráticos na internet.

O ponto de partida desta apresentação é a compreensão de que a liberdade de expressão é um direito inerente à pessoa humana e essencial para a sobrevivência de democracias. Ao lado do direito de acesso à informação, a liberdade de expressão é indispensável para a formação da opinião pública, para favorecer o pluralismo, promover a transparência das atividades governamentais, e é também condição para o exercício de outros direitos fundamentais porque assegura às pessoas o conhecimento e o acesso a mecanismos para buscar a realização desses direitos.

É importante destacar que a
liberdade de expressão não se limita a uma garantia de caráter individual de buscar, receber e difundir ideias e informações de todos os tipos, mas ela também possui uma dimensão social, correspondente ao direito de receber e conhecer as informações e ideias divulgadas por outros. Ambas as dimensões são de igual importância e devem ser garantidas simultaneamente para dar pleno efeito ao direito à liberdade de pensamento e expressão. É especialmente por conta dessa dupla dimensão que se entende que, sem uma efetiva garantia da liberdade de expressão, enfraquece-se o próprio sistema democrático e, no limite, se cria um campo fértil para que se estabeleçam​​ autoritarismos.

O direito à liberdade de expressão é reconhecido por diversos instrumentos internacionais, que contam com a adesão do Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969. Alinhada a esse cenário internacional, a Constituição Federal de 1988 consagrou o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação. No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a necessidade de proteger e assegurar o amplo exercício da liberdade de expressão e, especialmente por meio da ADPF 130, que tratou da inconstitucionalidade da lei de imprensa e da vedação da censura prévia, sinalizou que a Constituição incorporou um sistema de proteção reforçado das liberdades de expressão, informação e imprensa, reconhecendo uma prioridade
prima facie dessas liberdades públicas na colisão com outros interesses juridicamente tutelados, inclusive com os direitos da personalidade. Assim, embora não estabeleça hierarquia entre direitos fundamentais, esta Suprema Corte reconheceu que a liberdade de expressão possui uma posição preferencial, o que significa dizer que seu afastamento é excepcional.

Tal construção está alinhada ao entendimento dos órgãos internacionais de direitos humanos, que afirmam que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, mas que as restrições a ele são de natureza excepcional e não devem limitar o pleno exercício da liberdade de expressão além do estritamente necessário, sob o risco de tornar-se um mecanismo censura prévia direta ou indireta
. É por isso que a jurisprudência internacional estabeleceu três critérios para que se possa restringir a liberdade de expressão. São eles: (i) a restrição estar previamente prevista em lei, (ii) atender a um objetivo legítimo permitido pelo direito internacional dos direitos humanos (como o respeito aos direitos de outras pessoas) e (iii) ser necessária em uma sociedade democrática, cumprindo com os requisitos de adequação, necessidade e proporcionalidade.

Esses parâmetros, que são hoje aceitos e aplicados por órgãos internacionais de direitos humanos e, inclusive, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, um tribunal internacional com competência por responsabilizar o Brasil por violações de direitos humanos, deixam claro que restringir a liberdade de expressão não é um exercício automático nem trivial. Como disse, o fato de uma determinada conduta perfazer a possibilidade de restrição da expressão conforme esteja previsto em lei é apenas um dos critérios. No entanto, no caso concreto, além de se constatar que uma restrição à liberdade de expressão é permitida, o juízo de restrição à liberdade de expressão deve sempre considerar se a maneira e a extensão como essa restrição será aplicada é necessária, é idônea e proporcional aos fatos do caso. Esse é um juízo do qual o Poder Judiciário não pode se desincumbir, como seria diante de declaração de inconstitucionalidade do art. 19 do MCI.

Com isso, eu passo para o segundo ponto da minha fala. Para a ARTIGO 19, muitos dos desafios emergentes no ambiente digital não necessariamente estão relacionados a uma suposta inadequação ou insuficiência das ferramentas disponíveis ao Poder Judiciário para responsabilizar por violações de direitos fundamentais cometidas no contexto da expressão. Reconhecer o agravamento de fenômenos como a difusão de notícias fraudulentas e a necessidade de assegurar que a internet seja um espaço seguro para o exercício de direitos, especialmente por grupos historicamente minorizados, não pode conduzir a uma presunção da obsolescência do modelo de responsabilidade do Marco Civil da Internet. Pelo contrário. O que nós propomos é que esses fenômenos serão melhor enfrentados a partir de uma mudança de perspectiva, isto é, que se passe a discutir e regular os sistemas e processos que têm permitido o desenvolvimento de um modelo de negócios extremamente concentrado e que lucra a partir da amplificação de conteúdos extremistas, desinformativos e ofensivos a grupos vulnerabilizados.

Essa mudança de olhar está alinhada aos paradigmas de proteção à liberdade de expressão. Isso porque, conforme entende a Corte Interamericana de Direitos Humanos, os Estados têm o dever não apenas de minimizar as restrições à liberdade de expressão, mas também impulsionar o pluralismo, promovendo o direito à igualdade e à não discriminação.
É por esse motivo que a Corte Interamericana já indicou que a liberdade de expressão se vê restringida quando os meios pelos quais a liberdade de expressão é exercida são de propriedade de monopólios ou oligopólios, já que na prática a circulação de ideias e opiniões fica limitada. Como ficou evidente na menção pela manhã dos serviços prestados pelas empresas recorrentes nestes dois processos, estamos falando de um mercado extremamente concentrado, o que foi citado também pela representante do Ministério da Justiça.

Parece-nos fundamental reconhecer que os modelos de negócio de grandes plataformas de mídia social são baseados em algoritmos projetados para promover engajamento pelo maior tempo possível, e, justamente pelo engajamento que gera, esses algoritmos amplificam conteúdos abusivos e de ódio. Por isso, a ARTIGO 19 argumenta que modelos de responsabilidade de provedores de redes sociais que focam no
aumento do controle do conteúdo do discurso dos usuários sem interferência do poder judiciário fazem aumentar o poder dessas companhias, ao invés de contê-lo. Ao invés de tornar esse mercado mais plural. E é no excesso de poder por alguns atores privados que está a gênese de alguns fenômenos que tornam o ambiente digital extremamente agressivo e perigoso para pessoas pertencentes a grupos historicamente vulneráveis. Aliás, as pessoas pertencentes a esses grupos são extremamente silenciadas no espaço online, e aqui destaco as mulheres trans e as mulheres indígenas, que frequentemente têm suas manifestações em plataformas de mídias sociais censuradas por meio da suspensão de contas e postagens, que é feita sem transparência, sem espaço adequado de contraditório e sem mecanismos de reparação por retiradas ilegítimas e desproporcionais. Diante disso, simplesmente repassar aos provedores de aplicativos a responsabilidade precípua por policiar o que pode ou não ser dito no discurso público online é escolher delegar a atores privados motivadas pelo lucro o poder de delimitar o espaço cívico online, e, mais grave, já sabendo que a maneira como eles têm feito a moderação de conteúdo tem silenciado debates de interesse público e a expressão de parcelas importantes da população.

Por tudo isso, a ARTIGO 19 defende que o tema da regulação de plataformas que deve estar prioritariamente em pauta neste contexto atual de preocupação com a proteção de direitos e da democracia no ambiente digital seja de dimensão
econômica, da regulação econômica desse mercado de mídias sociais, voltada a enfrentar o poder excessivo de algumas poucas e grandes empresas que operam de forma opaca, que concentram serviços, que lucram com a manutenção do engajamento dos usuários e com seus dados. Essa regulação deve adequar esse mercado aos moldes da justa competitividade, ao respeito aos direitos humanos, deve promover a transparência e a prestação de contas. É assim, indo à raiz do problema, que se será possível construir uma solução que não seja sobre relegar a segundo plano a proteção de algum direito, mas sim que seja sobre proteger prioritariamente os direitos humanos como um todo e não os interesses econômicos de pouquíssimas pessoas que se fizeram donas do espaço cívico digital.”

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