Dia da Descriminalização do Aborto e Dia do Saber: desinformação segue sendo obstáculo a direitos sexuais e reprodutivos

Desde a década de 1990, comemora-se no dia 28 de setembro o dia latino americano e caribenho de luta pela descriminalização do aborto. Relembrado anualmente por organizações feministas da região, o dia rememora a necessidade de se descriminalizar a interrupção da gestação para todos os casos, de modo a se proteger integralmente os direitos das pessoas com capacidade de gestar e promover a igualdade de gênero.

Na mesma data, também se comemora o dia internacional do direito ao saber – ou dia internacional do direito de acesso universal à informação. O mesmo dia, portanto, serve para celebrar um dos pilares dos direitos humanos no mundo, que é justamente o instrumento que permite a todas as pessoas tornarem-se cientes de seus direitos humanos, participarem de maneira qualificada da vida pública de seus países e comunidades, e também tomarem decisões informadas – incluindo sobre seus corpos.

Apesar da coincidência de efemérides, o que se percebe no Brasil e na região da América Latina e do Caribe é que a desinformação segue sendo um grande obstáculo à efetivação de direitos sexuais e reprodutivos. Como parte da luta, a ARTIGO 19 produz e dissemina informações de qualidade e confiança para que todas as pessoas que precisem de acolhimento nos casos em que o aborto é legalizado, possam efetivamente encontrá-lo.

A última atualização do Mapa do Aborto Legal, lançada neste dia celebratório pela ARTIGO 19, indica que a cobertura dos serviços de saúde que realizam a interrupção de uma gestação prevista em lei – quando a gravidez é decorrente de uma violência sexual, quando oferece risco de vida à pessoa gestante e em caso de feto anencéfalo (ou seja, quando o feto possui desenvolvimento cerebral comprometido inviabilizando a vida) – não enfrentou graves pioras de 2019 para 2022. Contudo, se por um lado temos um aumento no número de hospitais que ofertam o serviço se comparado ao período da pandemia de Covid-19, por outro temos mais profissionais inseguros para o correto acolhimento às pessoas que gestam, como um reflexo de um governo que se mostra cada vez mais hostil em se tratando da saúde sexual e reprodutiva de mulheres e meninas.

Dos 132 hospitais indicados como aptos à realização do abortamento previsto em lei, 73 afirmaram que realizam o procedimento de aborto legal, conforme a lei prevê, ante a 20 hospitais que negaram. Os números são parcialmente satisfatórios se considerarmos que em proporções geográficas, apenas dois serviços estão localizados na região norte e outros seis no centro-oeste. Além do mais, 21 serviços de saúde informaram ser necessário apresentação de Boletim de Ocorrência ou Autorização Judicial, alegação que pode causar ainda mais sofrimento às pessoas vítimas de violência sexual quando da procura por acolhimento.

Esse desencontro de informações está atrelado a diversos motivos, desde aqueles mais específicos que envolvem a falta de treinamento regular para as equipes que atendem pessoas que gestam, até a escolha política de não informar propositalmente a população – ou desinformá-las ainda mais sobre seus direitos. Portanto, o acesso à informação sobre os direitos sexuais e reprodutivos, sobretudo na perspectiva do abortamento previsto em lei, enfrenta entraves em duas esferas indissociáveis: primeiro pelo serviço de saúde que nega o atendimento ou fornece uma informação mentirosa, segundo pelo Estado, que apoiado em convicções e crenças morais, obstaculiza as informações em saúde a fim de torná-las menos acessíveis para a população.

Dessa forma, ao final não há muitas vitórias a se comemorar no caso brasileiro, se não o dever de refletir sobre esses desafios que ainda permanecem – em especial devido a um período definidor para a democracia brasileira como as eleições presidenciais deste ano. Para além da circulação intensa de desinformação sobre o período eleitoral e do funcionamento das urnas pelos apoiadores da extrema-direita no país, a pauta do aborto também se encontra no cerne das inverdades políticas. Neste período, uma pauta tão importante para os direitos humanos deveria ser vista com seriedade e como uma questão de saúde pública, não como instrumento para discursos populistas e implementação de políticas baseadas na moralidade pessoal de governantes.

O pânico moral que o aborto gera limita se pensar melhor os impactos que ele causa, como o crescimento dos óbitos maternos nos últimos anos, que têm uma tendência a atingir mais fortemente populações historicamente vunerabilizadas, como as mulheres negras. Esse abismo social que o discurso contrário ao aborto provoca, não só restringe ainda mais o direito à interrupção da gestação, como também posiciona o Brasil entre aqueles países que ativamente defendem uma agenda anti-gênero como forma de cercear as liberdades sexual e reprodutiva.

A discussão sobre o aborto num período decisório para o Brasil tem o poder de impulsionar o debate sobre a autonomia e integridade moral das mulheres, meninas e pessoas que gestam, criando, a partir de suas diferenças, uma política relacional que assuma suas responsabilidades e as reconheça como parte do projeto democrático. Isso significa não apenas reconhecer a prática como legal, mas mais do que isso, construir e conservar uma proposição política firme de refundação democrática com base nas muitas barreiras que tais pautas enfrentam na conjuntura recente.

Na América Latina essa já tem sido uma preocupação entre alguns países, como por exemplo a Argentina, primeiro grande país da região a permitir que as pessoas com útero decidam sobre seus corpos e se querem ou não ter filhos, como também fizeram Uruguai, Cuba, Guiana e Guiana Francesa. O avanço dos direitos sociais na Argentina após a legalização do aborto rendeu um marco histórico que coloca no seio das obrigações de direitos humanos a efetivação dos mais altos padrões de saúde pública, passo fundamental para eliminar a discriminação contra as mulheres e meninas e pessoas que gestam. Enfrentar o debate do aborto nas eleições e promover o acesso de qualidade em saúde sexual e reprodutiva significa, portanto, ir ao encontro de valores basilares esperados em uma democracia.

 

 

 

 

 

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