Contra a interferência política no processo eleitoral e pela fortificação da confiança nas eleições

A ARTIGO 19 vem argumentando que as afirmações que questionam o sistema eleitoral brasileiro, seu ecossistema e tecnologias, têm a intenção de descredibilizar o processo eleitoral e suas instituições. Grupos que fomentam a dúvida e o descrédito sobre a legitimidade do processo não estão preocupados em garantir a segurança das eleições, mas, pelo contrário, encontrar justificativas e subterfúgios falaciosos que justifiquem abalos na democracia e no estado de direito.

Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo1 publicada nesta segunda-feira (12/9), as Forças Armadas farão, nas eleições deste ano, uma “apuração paralela em tempo real”. Para tanto, militares irão a 385 seções eleitorais, onde farão o registro fotográfico do QR Code constante dos boletins de urna impressos por cada urna eletrônica. Ainda segundo a Folha, a medida é “inédita na história democrática brasileira”.

A área de Direitos Digitais da ARTIGO 19 tem pesquisado e analisado as principais tecnologias do voto existentes no mundo – incluindo o sistema eletrônico de votação usado no Brasil e seu respectivo arcabouço normativo. Além disso, é uma das entidades que integram o Observatório de Transparência das Eleições, que tem as funções de colaborar com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nas tarefas de ampliar a transparência de todas as etapas do processo eleitoral, aumentar o conhecimento público sobre o sistema brasileiro de votação e resguardar a integridade do processo eleitoral.

Nesse sentido, a ARTIGO 19 esclarece que a possibilidade de realização independente de totalizações sempre existiu. Isso porque os boletins de urna, documentos impressos pelas urnas eletrônicas, condensam o número de votos recebidos na respectiva urna por cada candidato ou partido. A esse procedimento de contagem de votos depositados em cada aparelho dá-se o nome de apuração. Imediatamente após o encerramento da votação, os dados de cada boletim de urna são então enviados ao Tribunal Superior Eleitoral, onde um supercomputador faz a totalização. Esse segundo procedimento consiste na soma dos dados de todos os boletins de urna, à qual se aplicam as regras eleitorais vigentes (como a incidência do quociente eleitoral, no caso dos cargos proporcionais), gerando assim os resultados oficiais da eleição.

Portanto, considerando que os boletins de urna são documentos públicos, qualquer entidade ou cidadão pode fazer, por conta própria, uma apuração ou totalização independente ou paralela. Em municípios pequenos, é comum que, após somarem os dados dos boletins de urna, os candidatos conheçam o resultado do pleito antes mesmo da divulgação oficial pelo TSE.

Além disso, desde 2016 é possível que os dados de cada boletim de urna sejam importados automaticamente para dispositivos eletrônicos, por meio de QR Codes. Trata-se de mais uma medida da Justiça Eleitoral para incentivar a participação da sociedade no ciclo eleitoral brasileiro. Nas eleições deste ano, os boletins de urna serão divulgados na página do TSE assim que recebidos – ou seja, a partir das 17h do dia da eleição, tornando ainda mais simples a realização de verificações independentes.

Um dos pontos fundamentais de qualquer democracia é o pacto social em torno da escolha dos procedimentos por meio dos quais as preferências dos eleitores serão coletadas e contadas e da instituição responsável por essa missão. O respeito a esse pacto e a confiança nele depositada permitem que as discordâncias políticas sejam então metabolizadas por meio de eleições abertas, livres, justas e transparentes.

A ARTIGO 19 enfatiza que a Justiça Eleitoral é o organismo eleitoral brasileiro responsável por promover e organizar as eleições. Trata-se, portanto, da autoridade constitucionalmente competente para realizar com exclusividade e de maneira oficial, todas as cadeias de procedimentos que compõem o ciclo eleitoral brasileiro. Em outras palavras, a outras instituições de Estado não é dado executar funções que só competem à Justiça Eleitoral.

Assim, sem a devida contextualização, a notícia de que as Forças Armadas farão uma “apuração paralela” pode gerar leituras que confundem a compreensão do processo eleitoral brasileiro, dando a entender equivocadamente que outra instituição seria responsável ou teria autoridade para a proclamação do resultado ou de sua contestação fora dos meio legalmente instituídos para tal.

As Forças Armadas também são instituição de Estado, com suas próprias competências constitucionalmente previstas, das quais definitivamente não faz parte a gestão eleitoral, atividade eminentemente civil. Nesse sentido, qualquer insinuação de participação militar em procedimentos que não são de sua alçada constitui séria ameaça ao jogo democrático, ainda mais se for considerado que se trata de uma instituição que detém o monopólio da força.

O papel reservado às Forças Armadas no processo eleitoral restringe-se à possibilidade de participar de etapas de fiscalização e auditoria do sistema eletrônico de votação, assim como uma série de outros atores, como partidos políticos, Congresso Nacional, Ministério Público e Ordem dos Advogados do Brasil. Não se trata de atribuição menos importante, já que é por meio dela que o processo eleitoral brasileiro se faz mais transparente, seguro e confiável. Tampouco é admissível que a prerrogativa de fiscalização seja subvertida para que se coloque em xeque a lisura dos procedimentos eleitorais empreendidos pela Justiça Eleitoral, que é quem deve organizar e oficializar os resultados do pleito.

Arquivos brutos da totalização

A reportagem da Folha informa ainda que o TSE fechou um acordo com os militares “para liberar às entidades fiscalizadoras os arquivos brutos da totalização enviados pelos tribunais regionais”. Assim, ainda segundo o jornal, “os militares terão acesso em tempo real aos dados enviados para a totalização, em vez de ter de coletar as informações na base de dados do TSE disponibilizada na internet”.

A ARTIGO 19 consultou a assessoria de imprensa do TSE para verificar se essa informação é procedente. A resposta foi o envio de uma nota2 segundo a qual não houve “qualquer acordo com as Forças Armadas ou entidades fiscalizadoras para permitir acesso diferenciado em tempo real aos dados enviados para a totalização do pleito eleitoral pelos TREs, cuja realização é competência constitucional da Justiça Eleitoral”.

A ARTIGO 19 acrescenta que existe, isto sim, a possibilidade de as entidades fiscalizadoras, incluídas as Forças Armadas, solicitarem à Justiça Eleitoral os arquivos eletrônicos enviados ao TSE por cada seção eleitoral, mas apenas após encerrada a totalização, conforme previsão do artigo 46 da resolução 23.673/20213 do TSE, que dispõe sobre os procedimentos de fiscalização e auditoria do sistema eletrônico de votação.

A liberdade de expressão e de manifestação se caracteriza também pela livre escolha da representação política, e isso só se dá em um ambiente democrático, diverso, transparente e participativo. Deste modo, a ARTIGO 19 reitera sua confiança nas eleições brasileiras e repudia qualquer tentativa de desestabilização do trabalho da autoridade eleitoral e e do sistema eletrônico de votação em um período tão delicado da democracia brasileira.

(Crédito imagem: TSE)

REFERÊNCIAS

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