O aborto é legalizado no Brasil em três circunstâncias particulares. O chamado aborto terapêutico, tem como objetivo resguardar a vida da pessoa gestanteou então nos casos de anencefalia fetal. Para além desses dois casos, a legislação também prevê o abortamento nos casos em caso de estupro. Contudo, em 2022, esse direito ainda é cercado de práticas embasadas em informações falsas e no parco treinamento de profissionais de saúde e do Judiciário, responsáveis pelo acolhimento de pessoas vulneráveis e pela garantia de direitos fundamentais da população.
Neste mês, o The Intercept Brasil publicou uma reportagem contando a história de uma menina que foi estuprada aos 10 anos e, próxima da 22ª semana de gestação, descobriu que estava grávida. Ao procurar atendimento, o hospital se recusou a realizar o procedimento sem autorização judicial. Instado, o Ministério Público e a juíza Joana Ribeiro Zimmer negaram o direito da menina, afirmando que a mesma não estaria correndo risco de vida imediato e que a vida extrauterina do feto já estaria possibilitada – caso a menina aceitasse “aguentar mais um pouquinho” a gestação.
Em meios a violências e constrangimentos, a menina se aproxima da 30ª semana de gestação sem conseguir interromper uma gravidez decorrente de estupro – uma dupla violência permitida pelo Estado. Esse caso se soma a muitos outros e denota a ausência de informações confiáveis sobre o direito ao aborto no país e a instrumentalização desse direito com base na moralidade pessoal de atores que atuam na contramão dos direitos humanos.
A ARTIGO 19 expressa a mais profunda solidariedade à menina e sua família, além de condenar as ações dos profissionais de saúde e do Poder Judiciário envolvidos nessa situação. Abaixo estão elencados os pontos que mostram a névoa desinformativa que cerca o caso – e que também baseiam as tomadas de decisões que resultaram em uma grave violação de direitos de uma criança que, semana passada, completou 11 anos.
Desde a busca por acolhimento, a violência se repete. O Hospital (não identificado), no qual a menina procurou acolhimento, se recusou, institucionalmente, a realizar o procedimento, pois a gestação já havia passado (por 2 dias) da 22ª semana gestacional. O argumento para impedir a realização é de que a partir desse período, a vida extrauterina seria viável, portanto, não seria a realização de um aborto, senão um homicídio.
Essa é uma informação falsa. No Brasil, não existe limite de idade gestacional para a interrupção da gravidez – o que existem são indicações técnicas de modo de realizar o esvaziamento uterino a depender de quão avançada se encontra a gestação. Ademais, em 8 de março deste ano, a OMS divulgou parecer técnico informando que a comparação entre aborto e homicídio é infundada, pois a viabilidade da vida extrauterina seria apenas uma suposição médica, não uma certeza. O argumento desinformativo foi reiterado inúmeras vezes pela juíza Zimmer e pela promotora Mirela Dutra Alberton.
Esse caso demonstra, uma vez mais, a importância da tomada de decisões em saúde pública que respeitem protocolos médico-científicos, não apenas convicções morais. A própria forma com a qual a juíza se referia ao produto da concepção (“bebezinho”, por exemplo) e que se dirigia à menina são, além de uma violação do direito a um processo justo e digno, evidências da ausência de informações factuais sobre a realização do procedimento, o que dá lugar para não só informações falsas, mas convicções pessoais para a implementação de políticas públicas. No caso, a própria promotora afirmou que não sabia como o procedimento era feito.
Em realidade, é comum que a própria falta de informação seja usada contra as pessoas que procuram acolhimento para interromper uma gravidez. Muitas vezes, as vítimas são pressionadas a não realizarem o procedimento, por não entenderem que aquilo é um direito, ou como o procedimento é realizado. Dessa forma, é esperado que não seja conhecido que não é necessária a realização de Boletim de Ocorrência nos casos de aborto decorrente de estupro. Utiliza-se da vulnerabilidade da pessoa, que teme as repercussões de uma eventual denúncia, para que seja tolhido o direito ao abortamento previsto em lei.
O mais lamentável, é que essas políticas encontram total consonância com o que o governo federal atualmente acredita ser uma política decente para a saúde sexual de pessoas adultas, adolescentes e crianças. Uma das primeiras ações empreendidas pelo Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos (MMFDH) foi o lançamento de uma campanha para abstinência sexual voltada a adolescentes, que não só deixa de se basear em evidências científicas, mas também não traz nenhuma informação sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis e métodos contraceptivos.
Ainda outros dois documentos, emitidos pelo Ministério da Saúde (MS), também trazem conteúdos desinformativos e que têm como consequência a violação de direitos adquiridos. Primeiramente, a Cartilha da Gestante, lançada em maio (já corrigida), apresentava a amamentação como forma de prevenir uma nova gravidez no caso de pessoas lactantes. Essa informação vulnerabiliza mulheres no puerpério, pois não há garantia científica de que a amamentação de fato impeça uma nova gravidez no curto prazo.
Um segundo documento, também bastante preocupante, ainda em circulação interna, mas já trazido a público pelo jornal Gazeta do Povo, é uma nova cartilha de prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento no Brasil. A publicação desinforma, produz insegurança jurídica e representa um grande retrocesso na autonomia da pessoa gestante ao buscar ilegalmente impor a notificação à polícia como requisito para que um procedimento legalmente autorizado sem qualquer exigência de registro policial seja realizado.
A maneira mais eficiente de combater um cenário de violência reiterada e vulnerabilização, em especial de crianças e adolescentes, é garantir, em larga escala, a disseminação de informações seguras e respaldadas em conhecimento científico, mas que sobretudo garanta a efetivação de direitos humanos. Isso inclui, por exemplo, educação sexual em escolas, o reconhecimento do profissional de saúde como replicador das informações e também a certeza de que pessoas que necessitem o acolhimento previsto em lei consigam ter acesso ao direito e ao devido processo legal. isso porque as informações não devem circular apenas para o público geral, mas deve alcançar todas as pessoas responsáveis pela garantia do abortamento legal no país.
(Crédito da imagem: Mídia Ninja)