Sociedade civil celebra decisão liminar contra reconhecimento facial no Metrô de São Paulo

A juíza Cynthia Thome, da 6ª Vara da Fazenda Pública, proferiu decisão liminar para que a implantação do sistema de reconhecimento facial no Metrô de São Paulo fosse interrompida. “Essa decisão foi muito importante por sinalizar que a captação e o tratamento de dados biométricos afetam os direitos fundamentais dos cidadãos e merece proteção jurisdicional” explica Raquel da Cruz Lima, assessora do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19.

A liminar atendeu à Ação Civil Pública que tem o objetivo de impedir que os 4 milhões de usuários e usuárias diários do Metrô de São Paulo tenham informações sobre seus rostos coletadas, mapeadas e monitoradas por meio de tecnologias de reconhecimento facial. A ação foi assinada pela ARTIGO 19 Brasil e América do Sul, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Defensoria Pública da União, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu. Na ação, as entidades defendem que o sistema de reconhecimento facial implementado pelo Metrô não atende aos requisitos legais previstos na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no Código de Defesa do Consumidor, no Código de Usuários de Serviços Públicos, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal, além de parâmetros internacionais de Direitos Humanos.

Os números da adoção de sistemas de reconhecimento facial no Brasil aumentaram exponencialmente nos últimos anos. Estudos apontam que 21 das 27 unidades da Federação já implementaram essas tecnologias. O Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN) aponta que os usos abarcam verificação de identidade, verificação de presença escolar, segurança pública, mobilidade e transportes urbanos 1. A organização afirma também que, somente em festivais populares nos estados da Bahia e da Paraíba, 18 milhões de pessoas foram objeto dessas tecnologias 2.

Em geral, a naturalização da implementação de sistemas que coletam esse tipo de dado da população em locais de acesso irrestrito decorre de um senso comum que aponta para uma falsa dicotomia entre espaço público e privado, onde a privacidade e a proteção de dados não seriam direitos exercidos em lugares como o transporte coletivo, por exemplo. Ocorre que, ao contrário dessa ideia simplista, o debate sobre direitos humanos e tecnologias já se consolidou no sentido de apontar que esses direitos incidem e devem ser levados em consideração em espaços públicos.

Assim, sistemas como o proposto pelo metrô contrariam tratados internacionais assinados pelo Brasil e relatórios conduzidos por autoridades de direitos humanos, pondo em risco o gozo dos direitos à liberdade de expressão e de associação, já que a existência desse mecanismo de vigilância pode, entre outras violações, inibir a participação em manifestações, naturalizar a vigilância em massa, reprimir expressões individuais e coletivas pelo receio da constante observação e intensificar discriminações de corpos negros e não binários a partir das características físicas: Raquel da Cruz Lima acrescenta que “frequentemente essas tecnologias atingem pessoas não binárias e em transição, por exemplo, pois não reconhecem as mudanças nelas. Isso significa que poderiam perder o acesso ao bilhete único, apontando que seria outra pessoa usando bilhete. Há ainda os ‘falsos positivos’, em que as pessoas negras estão mais propensas a serem atingidas.”

Adicionalmente, os padrões internacionais de Direitos Humanos apontam que a submissão a uma vigilância constante pode levar ao que se chama de “efeito inibidor” (em inglês, chilling effect), contexto no qual as próprias pessoas autocensuram suas expressões por terem sua privacidade e anonimato comprometidas. Sobre esse tópico, Rafaela de Alcântara, assessora de Direitos Digitais da ARTIGO 19, pontua que “o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou um relatório no final de 2021 em que explicitamente registra preocupação em relação a condução de vigilância arbitrária e ilegal apoiada pelo uso de ferramentas como o reconhecimento facial, contexto no qual traça uma série de critérios e requisitos para que esse tipo de tecnologia seja utilizado de modo a não cercear o exercício de direitos humanos”. A especialista observa, porém, que “em geral, os critérios para a implementação e uso do reconhecimento facial pelo poder público no Brasil, a exemplo do caso do metrô de São Paulo, mostram o quanto estamos longe de considerar análises prévias necessárias para que os princípios direitos humanos sejam respeitados. Na prática, observamos com frequência que a justificativa tácita para a adoção desse tipo de projeto é o simples fato de a tecnologia estar disponível no mercado”.

Ainda a respeito de autoridades internacionais de direitos humanos, é relevante pontuar que, em 2021, a Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos chamou por uma moratória no uso de reconhecimento facial em espaços públicos até que as salvaguardas de direitos sejam estabelecidas 3. Relevante pontuar, nesse contexto, que diversas organizações da sociedade civil e especialistas já construíram o entendimento 4 de que uma moratória não é suficiente para alguns casos nos quais a natureza do projeto já demonstra, por princípio, que ele viola direitos humanos – como iniciativas que possam proporcionar a vigilância biométrica massiva e que, por isso, devem ser banidas. Esse é o caso do projeto questionado pela Ação Civil Pública que, por princípio, demonstra ser incompatível com os direitos humanos.

Insegurança do sistema – A decisão da juíza Cynthia Thome, observa que o Metrô não apresentou informações suficientes sobre a utilização do sistema, fazendo com que haja insegurança a respeito deste último “A utilização do sistema para atender órgãos públicos, por ora, não passa de mera conjectura, fato que, por si só, indica a insegurança do sistema que se pretende implantar. Há uma série de questões técnicas que necessitam de dilação probatória para serem dirimidas. Todavia, presente a potencialidade de se atingir direitos fundamentais dos cidadãos com a implantação do sistema”, traz o documento.

 

REFERÊNCIAS

1 Laboratório de Políticas Públicas e Internet, ‘Vigilância automatizada: uso de reconhecimento facial pela Administração Pública no Brasil(2021).

2 Laboratório de Políticas Públicas e Internet, ‘Contribuição para o relatório sobre os Direitos de Reunião Pacífica e Associação do Relator Especial das Nações Unidas’ (2022).

3 Urgent action needed over artificial intelligence risks to human rights. https://news.un.org/en/story/2021/09/1099972

4 Campanha “Ban Biometric Surveillance”: https://www.accessnow.org/ban-biometric-surveillance/

 

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