É preciso demarcar a diferença notória entre expressar-se livremente e promover o discurso que reforça discriminações estruturais da sociedade brasileira. A publicação do artigo “Racismo de negros contra brancos ganha identitarismo”, não se inscreve “nos limites do debate público”, como avaliou o editor da “Ilustríssima”, Marcus Augusto Gonçalves, em texto publicado no fim da noite da última quarta (19/02). A publicação, mais do que esgarça, ela extrapola os limites da liberdade de expressão, garantido na Constituição Brasileira como um direito essencial ao exercício da própria democracia.
Isso porque não existem prerrogativas absolutas quando se trata de direitos fundamentais: a liberdade de expressão é expressa em nossa Constituição, assim como inúmeros outros direitos e garantias. Em outras palavras, os limites da liberdade de expressão têm teto fixo, quando resvalam, entre outros, na indução à discriminação e ao preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. É premissa básica de qualquer garantia fundamental ser analisada em sopesamento junto às demais.
À categoria de comunicação em que a opressão histórica sobre grupos discriminados é reiterada ou negada podemos chamar inequivocamente de faceta do discurso de ódio, conforme a mais vasta literatura, tratados de direitos humanos, jurisprudência nacional e de cortes internacionais.
É o que ocorre, por exemplo, quando se tenta criar uma narrativa de pretensa possibilidade de “opressões inversas” em situações de violações históricas a direitos. Opressões como o racismo possuem como característica essencial a formação de poder e a estruturalidade da desigualdade entre grupo opressor, socialmente beneficiado, e grupo oprimido, socialmente vulnerado. O combate à discriminação racial é necessário à garantia dos demais direitos, na mesma medida em que a permanência da forma de opressão indica o prejuízo ao reconhecimento e exercício dos direitos humanos e fundamentais – como expressa o primeiro Artigo da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965). Nesse sentido, não há liberdade de expressão sem o combate, em paralelo, às formas de discriminação. E, ainda, não é possível invocar o direito de modo a usá-lo para perpetuar camadas de desigualdade e exclusão.
A narrativa revisionista que tenta criar um discurso negando opressão racial ou sugerindo racismo reverso, termo utilizado pela publicação da Folha de S.Paulo, constitui, por si só, uma violação a direitos do grupo historicamente oprimido, pois reifica a rejeição a quem já foi submetido à violência.
Ultrapassa, portanto, a liberdade de expressão, pois viola o direito coletivo do grupo discriminado à memória da injustiça sofrida, substituindo-a por narrativas falseantes da realidade, elemento essencial para o combate a práticas similares. Este é, inclusive, o entendimento do Supremo Tribunal Federal em julgamento sobre discurso de ódio x liberdade de expressão, em caso similar em que afirmou:
“A edição e publicação de obras escritas veiculando ideias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas consequências históricas dos atos em que se baseiam.”(STF, HC 82424/RS, grifamos).
Não se está a tratar, portanto, de liberdade de expressão, mas de revisionismo com alto teor de reificação discriminatória, sendo este o tema sobre o qual se manifestaram mais de 190 jornalistas da equipe. Em 2019, a Organização das Nações Unidas se mobilizou contra o hate speech em estratégia global, afirmando que “é necessário tratar o incitamento ao ódio como qualquer ato malicioso “condenando-o, recusar a amplificá-lo, combatendo-o com a verdade e incentivando os responsáveis a mudar o seu comportamento.” Narrativas falaciosas que impulsionem o descrédito a opressões históricas sofridas e tentem punir os vitimados, como se fossem ofensores, são parte da ampliação do problema.
Por este motivo, a ARTIGO 19 manifesta seu apoio aos jornalistas e soma-se às vozes que denunciam a inexistência de confusão entre liberdade de expressão e discurso de ódio, separados pela evidente demarcação histórica dos fatos e das opressões.
(Crédito da ilustração da capa: Internetlab)