No último sábado (24) a população voltou às ruas em todo o Brasil dando continuidade ao levante contra o governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Desde o início dessa nova onda de protestos, é evidente o entrelaçamento das lutas e das demandas sociais. Somam-se à oposição feita à gestão da crise sanitária as demandas contra a fome, a violência institucional, o racismo, o machismo, as violências sofridas pela comunidade LGBTQIAP+ e a luta por terra e território. Nesse contexto, uma cena nos protestos do último fim de semana evidenciam essa inter-relação entre demandas conjunturais e as suas bases estruturais: em ato simbólico, um grupo de manifestantes ateou fogo na estátua de Manuel de Borba Gato, inaugurada em 1963 e localizada em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Os bombeiros contiveram o fogo rapidamente.
Tamanha insatisfação com o monumento que homenageia Borba Gato – assim como com outras homenagens a figuras dos episódios escravocratas e autoritários da história do país – é antiga e tem ganhado maior visibilidade nos últimos anos. Borba Gato foi um bandeirante escravocrata, responsável pela captura e morte de indígenas, negros e negras durante o processo de interiorização do Estado de São Paulo. A manutenção da estátua é vista pelos manifestantes como uma exaltação de um passado colonialista e genocida.
A ação para a derrubada da estátua do bandeirante é parte de um movimento internacional, no qual insurgências populares têm derrubado monumentos de ditadores, genocidas e colonizadores como forma de reparação histórica pela imposição da narrativa que os coloca como heróis nacionais, tentando apagar a violência e dominação por eles exercidas. Esse movimento é crescente, especialmente após a Primavera Árabe, com destaque para os ocorridos durante os atos do Black Lives Matter nos EUA e em alguns países da Europa, e durante os levantes populares e indígenas na América do Sul (como a estátua de Pedro Valdívia no Chile).
Momentos de profunda transformação política e social costumam ser marcados pelo questionamento de símbolos de um passado entendido como injusto. O que esse movimento nos mostra é que o conflito social é algo presente em períodos de tensionamento democrático – seja pela luta para o aprofundamento da democracia ou contra o avanço do autoritarismo. Nesse sentido, o que por vezes é caracterizado como ato violento é, na realidade, uma ferramenta de reivindicação de grupos aos quais são negados os espaços tradicionais de participação e decisão, ou quando a resposta à demanda termina por reafirmar a discriminação. Dessa forma, ainda que outras soluções devessem idealmente ser priorizadas, há que se observar estes protestos sob essa perspectiva, não os compreendendo a priori como uma ameaça, especialmente quando relacionados a um silenciamento histórico.
Na quarta-feira (28), foi expedido mandado de prisão contra Paulo Roberto da Silva Lima (também conhecido por Galo, militante dos direitos dos entregadores de aplicativo), Géssica Barbosa, sua companheira, e Danilo Oliveira (Biu) após se apresentarem no 11º Distrito Policial de Santo Amaro, em São Paulo. Eles são investigados por incêndio, associação criminosa e adulteração de placa de veículo. Importante mencionar a irregularidade do pedido de prisão temporária, decretada mesmo sem serem identificados os requisitos para prisão preventiva.
A resposta criminalizante, como está acontecendo com militantes que teriam participado da ação contra o monumento, opera como um reforço de uma estrutura de violência que, usada sempre como a primeira resposta, interdita o debate público e reitera o silenciamento das demandas da população contra o que esta homenagem simboliza numa sociedade racista e misógina, como a nossa. Explorar os discursos que acusam manifestantes de “vândalos” e, não raro, de “terroristas” é preservar a hegemonia da narrativa conservadora que ignora a violência reproduzida na manutenção da homenagem e não reconhece a existência de uma diversidade de modelos e táticas de reivindicação legítimos.
Embora tenhamos a paz como um princípio e um fim único, não podemos dogmatizar experiências sociais nas mais diversas culturas e nos diferentes modos de governar – assim entende a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao afirmar que “as condições em que muitas dessas manifestações e reivindicações se apresentam são complexas e requerem respostas adequadas das autoridades no que diz respeito à garantia dos direitos humanos”. Segundo a Comissão, um protesto social pode se manifestar de muitas maneiras diferentes e, nas Américas, é comum que ocorram atos que podem ser interpretados como violentos. Ainda assim, segundo os padrões internacionais de direitos humanos, os Estados devem presumir a legalidade dos protestos, partindo do pressuposto de que não constituem uma ameaça à ordem pública.
A ARTIGO 19 reafirma que a garantia da liberdade de expressão, de associação e de reunião, bem como o direito de participação, deve ser respeitada e que a coerção por meio da criminalização de manifestantes no contexto dos atos do último sábado representa um silenciamento de lutas históricas. É urgente que as garantias constitucionais sejam respeitadas e que as arbitrariedades sejam imediatamente sanadas. Igualmente, tais episódios não devem servir de pretextos para o endurecimento de leis penais que violem o direito de protesto e a ação política de organizações e movimentos sociais.
(Crédito da imagem: Lucas Martins/Jornalistas Livres)