Protestar é exercer a democracia: as manifestações no Brasil e sua inserção no ciclo de levantes na América do Sul

A população vai às ruas em todo o Brasil, seguindo e promovendo o protocolo sanitário,

para denunciar  as ameaças e violações de direitos cometidas pelo governo de Jair Bolsonaro

 

Importantes manifestações estão ocorrendo no Brasil  desde junho de 2020, com o mote “Nem bala, nem fome, nem covid”, puxado pelos movimentos negros, e afirmando que “Bolsonaro é mais perigoso que o vírus”. Os protestos antirracista e antifascista de 7 de junho do ano passado, assim como os protestos após a chacina no Jacarezinho, foram responsáveis por recolocar o campo progressista nas ruas. Ao mesmo tempo, também trouxeram para o debate público que é possível exercer o direito de protesto, desde que fossem respeitados os protocolos sanitários. 

Nas recentes grandes manifestações ocorridas nos dias 29 de maio, 19 de junho e 03 de junho, milhares de pessoas foram às ruas de todo o país, para protestar contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e sua gestão na pandemia da COVID19 e, mais recentemente, impulsionadas pelas denúncias de um bilionário esquema de corrupção na compra das vacinas, envolvendo o governo e sua base aliada. A população brasileira foi às ruas motivada pela angústia diante do avanço da pobreza e do absurdo número de mortos pela COVID-19 sob a gestão de Bolsonaro, totalizando mais de 528.000 óbitos até a presente data (08/07/2021).

Os povos originários também se muniram de máscaras e cuidados para exigir o direito a seus territórios ancestrais. Em 16 de junho, mais de 800 indígenas de 40 povos de diversas regiões do país foram até Brasília exercer seu direito à manifestação. O protesto se deu no contexto de oposição ao PL nº 490/2007, em tramitação na Câmara dos Deputados, que pode afetar de forma inconstitucional o regime de demarcação das terras indígenas. Além disso, os indígenas se mobilizaram também em apoio à continuidade do julgamento de repercussão geral no Recurso Extraordinário 1.017.365/SC, no Supremo Tribunal Federal, onde se discute, no limite, o direito dos povos indígenas à terra.

As manifestações massivas em todas as regiões do país expressaram o descontentamento com um governo que promove graves ataques aos princípios fundamentais da democracia e do Estado de Direito. A ARTIGO 19 e numerosas organizações da sociedade civil vêm demonstrando que o núcleo central do governo e seus apoiadores têm promovido graves violações contra a liberdade de expressão, o acesso à informação e à liberdade de associação e de reunião, assim como tem fomentado a perseguição às vozes dissidentes, especialmente os movimentos sociais, comunicadoras, comunicadores e defensoras e defensores de direitos humanos

 

Repressão e uso excessivo da força 

Os protestos ocorreram com tranquilidade na maior parte do país, porém episódios de repressão policial ainda constituem um problema a ser enfrentado.  Em Brasília, a tentativa dos manifestantes dos povos indígenas de acessar a sede da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) resultou em uma resposta desproporcional da Polícia Militar do Distrito Federal. Sob a justificativa de estar garantindo a “preservação da ordem pública e a segurança das pessoas que trabalham nas dependências do prédio e no entorno, bem como para proteção do patrimônio”, conforme nota divulgada pela FUNAI, a PM impediu que os manifestantes adentrassem o prédio. Além do uso de bombas e spray de pimenta, também houve o deslocamento da tropa de choque. Ao uso excessivo da força se soma, então, a violação ao direito de participação dos povos indígenas, que não acessaram qualquer espaço de escuta e diálogo.  

Em Pernambuco, nos atos de 29 de maio, a Polícia Militar reprimiu violentamente os manifestantes lançando mão de bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha de forma indiscriminada e sem qualquer justificativa. As imagens aéreas do local comprovam os abusos e a desproporcionalidade da atuação da Polícia. A ARTIGO 19 alerta para as arbitrariedades que, segundo o governo pernambucano, foram de encontro às diretrizes dadas pelo executivo estadual ao comando da Polícia Militar; e demonstra preocupação com a progressiva autonomia que as polícias estaduais vêm buscando, tendo em vista que, em contexto de protesto, a entidade historicamente age contra a população, sobretudo os mais vulnerabilizados.

Vítimas da repressão, os transeuntes Daniel Campelo da Silva, de 51 anos, e Jonas Correia de França, de 29 anos, foram atingidos por balas de borracha e perderam a visão de um dos olhos. A ARTIGO 19 reafirma que o uso desse armamento atenta contra a liberdade de manifestação e contra a vida da população brasileira. Numerosos estudos comprovam que, apesar do potencial letal reduzido, comparado à arma de fogo, o uso dessa munição continua pondo em risco a integridade física e a vida de manifestantes e transeuntes. Junto à Comissão da Advocacia Popular da OAB/PE, enviamos à Secretaria de Defesa Social de Pernambuco um pedido de informações e de providências referentes ao protocolo de atuação da Polícia Militar de Pernambuco (PMPE) neste protesto.

Recordamos que em sentença histórica proferida no dia 10 de junho, o Supremo Tribunal Federal, por 11×1, decidiu pela responsabilização do Estado e a necessidade de indenização de Alex Silveira, fotojornalista que perdeu a visão do olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha enquanto cobria uma manifestação de professores em São Paulo em 2000. É urgente a responsabilização das forças policiais nos casos de repressão  e o abandono do uso de  armamento dito “menos letal” no contexto de protestos.

A criminalização de vozes dissidentes e os riscos ao direito de protesto

Nesse contexto, preocupa o avanço de projetos de lei que atentam contra as liberdades fundamentais e que fortalecerão, se aprovadas, as ferramentas estatais de perseguição e criminalização da ação política de movimentos e organizações sociais.  Em particular, o PL 2108/2021 que institui uma nova Lei de Segurança Nacional, aprovado na Câmara de Deputados e em vias de ser aprovado pelo Senado. E o PL Antiterrorismo (Projeto de Lei nº 1595/2019), cuja tramitação foi retomada em meio à onda dos protestos de junho, com a instalação em 29/06 de uma Comissão Especial que analisará a matéria na Câmara dos Deputados.

Apesar de terem intenções distintas, ambos projetos coíbem de forma perigosamente genérica a liberdade de associação e de expressão, contra qualquer pessoa ou grupo que possa fazer oposição ao Governo Federal. O PL 1595/2019 inclusive estabelece a criação de um sistema de inteligência paralelo com gestão concentrada no Executivo Nacional. Em carta ao governo brasileiro, sete relatores especiais das Nações Unidas manifestaram, no dia 18 de junho, preocupação pela tramitação de projetos que visam alterar a Lei Antiterrorismo de 2016. Segundo os relatores, “a indefinição dos conceitos poderia incluir manifestações públicas organizadas, tais como protestos e greves, assim como qualquer ação ou manifestação”.

A ARTIGO 19 recorda que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos deixa claro que, em uma democracia, os Estados devem presumir a legalidade dos protestos, partindo do pressuposto de que não constituem uma ameaça à ordem pública. Segundo Clément Voule, Relator Especial sobre Liberdade de Reunião Pacífica e Liberdade de Associação da ONU, os Estados devem “garantir que a emergência de saúde pública não seja usada como pretexto para violações de direitos. (..) A crise não é justificativa para o uso de força excessiva na dispersão das assembleias.” 

 

Voltar às ruas em nome do respeito à vida, do respeito aos

territórios dos povos originários e contra a perseguição das vozes dissidentes

 

A ARTIGO 19 manifesta seu apoio e respeito a todas e todos que foram às ruas, legitimamente, lutar por nossos direitos e pelas milhares de vidas perdidas. Contando com a união de diversos setores sociais, os protestos de maio, junho e julho de 2021 estão promovendo umas das mais fortes e mais potentes manifestações desde 2018 no Brasil e, desse modo, somam-se aos recentes levantes contra medidas autoritárias que ocorreram em todo o mundo, especialmente nos vizinhos sul-americanos Chile e Colômbia. Tais mobilizações provam que com organização e cuidado mútuo, é possível lutar pela democracia, pela liberdade de expressão e pelo direito de protesto quando o Estado avança sobre direitos fundamentais. 

 

(Crédito da imagem: Mídia Ninja)

 

Notas de rodapé

  1.  Disponível em: https://cimi.org.br/2021/05/pl-490-ataca-direitos-territoriais-indigenas-inconstitucional-analisa-assessoria-juridica-cimi/
  2.  Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2021/nota-a-imprensa-sobre-manifestacao-em-frente-a-sede-da-funai
Icone de voltar ao topo