Aplicação de multa a jornalista em caso de grande repercussão e ordem para alteração de conteúdo evidenciam o uso do meio judicial para censura
A ARTIGO 19 vem a público condenar os processos judiciais movidos contra o The Intercept Brasil e à jornalista Schirlei Alves referentes à publicação de matéria sobre o caso Mariana Ferrer. A decisão no sentido de alterar o conteúdo da matéria alerta para o uso do meio judicial para a censura de conteúdos jornalísticos.
No dia 3 de novembro a jornalista Schirlei Alves publicou, no The Intercept Brasil, matéria que denunciava a violência institucional no sistema de Justiça brasileiro, pautando o caso de Mariana Ferrer. O uso das palavras “estupro culposo” para traduzir o posicionamento acatado pelos operadores do direito presentes em audiência teve forte repercussão nas manifestações solidárias à Mariana e, posteriormente, à Schirlei, que passou a ser atacada após a publicação de seu trabalho. Entretanto, quatro dias depois, a 3ª Vara Cível de Florianópolis decidiu pela alteração do conteúdo da matéria em questão, com a supressão do termo “estupro culposo”, e multa de descumprimento diária de mil reais para o The Intercept e de duzentos reais para a jornalista. A decisão foi proferida após análise das provas pelo Promotor e pelo Juiz do caso de Mariana, que entenderam que a matéria jornalística atribuiria “de forma distorcida, inverídica, parcial e sem precisa e prévia apuração dos acontecimentos” a expressão “estupro culposo” ao Promotor Thiago Carriço de Oliveira. As ações movidas contra o portal e a jornalista contam também com pedidos de indenização por danos morais.
A forma com que o caso tem sido conduzida representa grave ataque à liberdade de expressão e de imprensa. Em primeiro lugar, o entendimento da Juíza Ceni Serly Rauen Vieira sobre o uso do termo “estupro culposo” pela jornalista está equivocado. O próprio The Intercept explicou o uso de aspas para evidenciar o sentido figurado do termo, sem de fato atribuir a utilização do mesmo ao Promotor. O site inclusive admitiu que errou “ao não deixar ainda mais claro no corpo do texto que a expressão “estupro culposo” não estava nos autos, mas era uma interpretação do que defendeu o promotor em suas alegações finais”. O termo “estupro culposo”, assim, não dizia respeito à conduta individual do Promotor de Justiça que se sentiu atacado, e sim a forma como o sistema de Justiça brasileiro deixa de conduzir propriamente as ações de violência sexual contra a mulher – fazendo uso, inclusive, de meios simbólicos, semânticos e jurídicos para coibir denúncias dessas formas de violência.
Ainda, destacamos o ataque ao direito à liberdade de expressão e de imprensa – direitos constitucionalmente garantidos – por meio da decisão que ordena a alteração do conteúdo. Por diversas vezes, observamos decisões judiciais que determinam a retirada do conteúdo do ar, o que, por si só, já tolhe os direitos mencionados. A alteração de conteúdo, entretanto, perfaz expressão evidente da censura de conteúdos jornalísticos pelo meio judicial, a partir do momento que descaracteriza a narrativa criada pelo comunicador. No caso de Shirlei, a retirada do termo “estupro culposo” não somente descaracteriza seu trabalho, como também ameniza a gravidade do caso exposto pela jornalista. O episódio e a demanda pela alteração da matéria remetem aos tempos sombrios em que a ditadura militar censurou a imprensa, forçando veículos a publicar seus conteúdos com tarjas pretas sobrepostas aos trechos considerados subversivos.
A decisão aqui questionada traz a tona, mais uma vez, aquilo que Schirlei apontou em seu trabalho: a narrativa adotada pela Justiça brasileira ao se deparar com um caso de estupro. Neste caso, pode se observar de forma concreta que a dificuldade de dar prosseguimento às denúncias resvala inclusive na liberdade de expressão e imprensa e na proteção destes direitos. Novamente, manifestamos solidariedade à jornalista Schirlei Alves e agradecemos publicamente pela produção de conteúdo tão incômodo que não somente provocou comoção em todo o país e desenvolvimento de uma pauta crítica no que tange a questão de gênero no meio do Direito, mas que continua escancarando a forma como a narrativa jurídica se constroi ao redor dos casos de violência sexual contra a mulher, tentando silenciar suas narrativas.
Lembramos, uma vez mais, que o Estado e seus representantes em todas as esferas têm a obrigação de prevenir, proteger e processar ataques contra jornalistas e defensores dos direitos humanos. Tal obrigação perpassa a garantia de ambiente seguro para mulheres comunicadoras, em especial para aquelas que denunciam questões relativas aos direitos humanos, e que por tal defesa são amplamente atacadas. Neste caso, a decisão de alteração de conteúdo opera de forma oposta à proteção, ferindo o direito à liberdade de expressão e vulnerabilizando o trabalho da jornalista. Esperamos, dessa forma, que o Poder Judiciário reveja seu posicionamento, seja pela via recursal ou por decisões posteriores ainda em primeiro grau de jurisdição.
* Nota: os processos referidos correm em segredo de justiça. As informações apresentadas aqui foram retiradas de outras notícias e conteúdos disponíveis na internet, e não do próprio processo, dada a impossibilidade de acesso ao mesmo.