Em audiência, Comissão manifestou preocupação com o cenário brasileiro e cobrou de representantes do governo respostas concretas para reverter violações
Na última terça-feira, (06/10), uma delegação de representantes de organizações da sociedade civil e jornalistas apresentou uma série de denúncias sobre o governo federal brasileiro na 177ª audiência temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão independente e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA). As denúncias revelaram um cenário de violações ao direito à informação, à transparência e às liberdades de expressão e imprensa no Brasil, em especial no atual cenário de pandemia de Covid-19, que segue em rápido crescimento e já vitimou mais de 146 mil pessoas no país. Os relatos foram recebidos com preocupação pela Comissão, sobretudo pelos relatores de Liberdade de Expressão, Pedro Vaca, e para o Brasil, Chile e Honduras, Joel Hernández García.
Foi destacado à Comissão o crescimento de ataques, perseguições e intimidações a jornalistas e comunicadores que noticiam de forma crítica as medidas do governo e os posicionamentos do Presidente da República, numa ampla tentativa de silenciamento e de violações ao direito ao acesso à informação. A delegação destacou que as ações vão na contramão de recomendações da própria OEA e atingem de maneira mais acentuada grupos populacionais que têm sido historicamente invisibilizados, como os povos tradicionais e indígenas, população negra e mulheres, moradores de periferias e favelas no Brasil.
Casos emblemáticos de criminalização e perseguição da prática jornalística foram apresentados. Um deles foi o da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de São Paulo, que vem sendo alvo de ameaças e insultos machistas, difamações e ataques por parte do presidente Jair Bolsonaro, seus familiares e apoiadores. O jornalista Pedro Borges, da agência de notícias Alma Preta, também relatou os ataques inverídicos promovidos pelo presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, responsável por retirar do ar textos importantes para a cultura negra no Brasil.
Além dos jornalistas, os dados e informações foram apresentados por representantes da sociedade civil: Ana Flávia Marx, do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé, Sandra Andrade, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, Leonardo Pinho, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Denise Dora, da ARTIGO 19, Camila Konder, do Repórteres Sem Fronteiras e Iara Moura, do Intervozes.
CIDH expressa preocupação com o Brasil
Os representantes do governo na audiência se limitaram a repetir as garantias constitucionais e o aparato legal de proteção aos direitos humanos existente no país desde de governos anteriores, sem apresentar medidas concretas para reverter as violações.
As manifestações do poder público foram recebidas com preocupação pelo relator de Liberdade de Expressão, Pedro Vaca, que fez críticas ao governo brasileiro com relação ao descompasso causado por respostas gerais em torno das graves denúncias. “Está faltando uma ponte entre o panorama de denúncias apresentadas nas audiências e a posição do Estado e de seus representantes quanto ao que está acontecendo de fato”. Para ele “enquanto os detentores de poder não oferecerem informações concretas sobre as acusações e, claro, cumprir com suas obrigações, é evidente que a relatoria terá que promover uma terceira ou mesmo uma quarta audiência para seguir acompanhando e monitorando o progresso e avanço da liberdade de expressão e imprensa no país”, afirmou.
A relatora sobre os Direitos das Pessoas Migrantes e sobre os Direitos das Pessoas Idosas da CIDH, Julissa Mantilla, iniciou lembrando a importância de olhar para a violência contra as mulheres no Brasil, em especial no contexto de mulheres jornalistas de acordo com a convenção de Belem do Pará, de 1994, que de maneira ampla define as múltiplas formas de violência, incluindo aquela promovida e tolerada pelo estado ou seus agentes. Mantilla destacou que “além de definir o que é a vida livre de violência, a convenção também estabelece em seu texto que os estados condenem veementemente qualquer estereótipo de gênero e violações contra as mulheres, e, que, portanto se abstenham de qualquer ação e prática violadora de direitos, zelando para que os funcionários, agentes e instituições se comportem de forma condizente com esse princípio”, disse.
Joel Hernández Garcia, vice-presidente da Comissão Jurídica Interamericana e relator especial do caso brasileiro destacou seu repúdio a todas as ações de ataque a comunicadores. “Ações discriminatórias por gênero ou raça são inaceitáveis e vão contra os fundamentos de uma sociedade democrática. Fiquei impactado pelas declarações feitas pela Jornalista Patrícia Campos Mello. Isso é violência de gênero e o Estado tem uma obrigação de respeitar e garantir os direitos humanos. Faço um apelo para que estas ações misóginas parem, em geral, mas também especificamente contra jornalistas mulheres”, declarou.
Cenário se agravou ao longo do ano
Em março deste ano o Brasil já havia sido denunciado na CIDH por violações sistemáticas à liberdade de expressão, ataques massivos à imprensa, censura às liberdades artística e cultural, sufocamento dos espaços de participação social e acesso à informação pública. Na época, a CIDH mostrou-se preocupada e criticou o momento vivido no país, ressaltando o dever do governo em prevenir ataques à liberdade de expressão, além de promover e valorizar o trabalho jornalístico.
Sete meses depois, dados de um monitoramento da ARTIGO 19 revelam um total de 449 violações contra jornalistas e comunicadores cometidas por Bolsonaro, seus ministros, e familiares que exercem mandatos e políticos relacionados, entre janeiro de 2019 e setembro de 2020. Não só jornalistas foram expostos individualmente em 104 casos (23%), por meio de acusações, exposição de fotos e de nomes – gerando, em grande parte das vezes, ataques virtuais em massa -, como também alguns veículos de comunicação foram sistematicamente hostilizados nesse período. Vale destacar que a situação é especialmente crítica e agravante para as mulheres jornalistas, que de maneira recorrente são alvos de campanha de desinformação que mobilizam discriminações e são estimuladas e amplificadas pelo governo.
As organizações destacaram que o conjunto de violações, que já eram graves, se tornam ainda mais alarmantes no contexto da pandemia. O Brasil se tornou em poucos meses um dos mais afetados pela Covid-19 no mundo todo e segue com uma lacuna de diretrizes e políticas públicas eficazes de enfrentamento das crises sanitária, econômica e política. Nesse sentido, um ponto de atenção da denúncia está relacionada com a falta de acesso à internet, que intensifica a exclusão digital de dezenas de milhares de brasileiros e que impacta fortemente nos caminhos para a garantia do acesso à educação, informação, trabalho, cultura e lazer no atual contexto.
Esse cenário tem raízes profundas no racismo estrutural e pode ser observado à medida que mais de 40 milhões de pessoas vivem sem acesso à internet no país: os dados apresentados mostraram que entre os brasileiros e brasileiras já conectados das classes D e F, 85% se conectam somente pelo celular e a maioria mora em zonas rurais ou bairros empobrecidos das grandes cidades. Cerca de 41% dos moradores da zona rural do país nunca acessaram a internet e a pandemia só agravou um problema estrutural e sistêmico de omissão e violação, onde 30% dos municípios brasileiros não contam com a rede de transporte de alta qualidade para suportar uma infraestrutura.
ARTIGO 19 denuncia apagão de dados
Em sua participação, a diretora executiva da ARTIGO 19, Denise Dora, apresentou em ordem cronológica uma série de episódios que marcam as ações do governo durante os meses de pandemia no Brasil, destacando que a desinformação se tornou uma prática usual do Estado mesmo neste cenário crítico. “Logo no início de março, o governo Bolsonaro editou uma medida provisória para alterar a Lei de Acesso à Informação (LAI), aumentando o período de sigilo das informações classificadas e suspendendo o prazo de recurso para a solicitação. Na época, foi preciso que a sociedade civil fosse ao Supremo Tribunal Federal (STF) para conseguir que a MP fosse suspensa e que se mantivesse o acesso às bases de dados públicas no Brasil”, apontou.
Em junho, depois da troca de dois Ministros da Saúde, o governo retirou do ar dados fundamentais sobre contaminação e óbitos a partir dos seus registros regionais, impedindo que a população do país e os órgãos públicos de saúde e os próprios governos estaduais e municipais organizassem uma estratégia coerente e consistente de prevenção de mortes anunciadas. Mais recentemente, o Ministério do Meio Ambiente inserviu junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) para derrubar dados e suspender profissionais especialistas em assuntos de produção de dados ambientais. Isso aconteceu “exatamente para permitir que houvesse um avanço sobre os territórios já intitulados de populações tradicionais e de reservas ambientais brasileiras, resultando no maior incêndio já visto no país, que tem elevado a temperatura e alterando fortemente o ambiente climático”, declarou Denise.
Sandra Andrade, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, apontou que com a pandemia as comunidades quilombolas viram as suas vidas serem ainda mais prejudicadas diante da inércia do governo federal em garantir ações concretas de enfrentamento das crises. “Nesse momento de pandemia de Covid-19 o cenário das comunidades quilombolas é de total descaso e abandono. Parece que fomos escolhidos a dedo para morrer: sem território, sem assistência à saúde, sem água e sem comida. Querem acabar com as nossas vidas, nossa economia e nossa cultura”, afirmou
Ainda é válido destacar que o próprio Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, representado durante a audiência, retirou da sua base de dados informações relevantes sobre violência policial no Brasil, que de forma sistêmica atinge a população negra no país.
Ou seja, há uma negligência na produção de dados com recorte para prejudicar as populações vulnerabilizadas, além de uma manipulação dos dados que dizem respeito a pandemia.“Se produz desinformação atacando a imprensa livre e apagando dados públicos. É dessa maneira que autoridades governamentais colocam uma população inteira refém de políticas nefastas, anti democráticas e que ao final não trazem o bem comum”, completou Denise Dora.
Confira o vídeo da audiência na íntegra aqui.