No dia 10 de setembro, o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, (GT Agenda 2030) e a ARTIGO 19 promoveram o debate online “II Diálogo Público sobre Agenda 2030 da Região Sul”, que discutiu a situação dos direitos humanos, meio ambiente, políticas públicas e trabalho digno na região. O debate, com edições realizadas em outras regiões do país, buscou pensar regionalmente como responder aos desafios urgentes sintetizados na quarta edição do Relatório Luz da Sociedade Civil Sobre a Agenda 2030.
A análise das metas de desenvolvimento sustentável realizada na publicação mostrou que mesmo antes da pandemia de Covid-19 que se estabeleceu no Brasil e no mundo, já havia retrocesso nos indicadores analisados sobre as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil, país que foi um dos 193 signatários do acordo que deu origem à Agenda 2030, na Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, o coronavírus agravou a situação, exacerbando as crises socioambiental, econômica e política e que afeta sistematicamente populações em contexto vulnerável.
No aspecto ambiental, 90 metas dos ODS se relacionam diretamente com o meio ambiente. “Dessas metas, 32 estão em franco retrocesso, 17 ameaçadas, 16 sem nenhum dado, 14 estagnadas, 9 com um progresso muito insuficiente e apenas 2 em progresso satisfatório. Mesmo com a insuficiência de dados, temos aqui evidências importantes de retrocessos nas metas do país. Sem dados acurados sobre desmatamento, processo ilegal de terras e de poluição de rios é muito difícil pensar políticas públicas”, disse Denise Dora, diretora executiva da ARTIGO 19, durante a mesa de abertura do diálogo da região Sul.
“Daqui podemos tirar elementos fundamentais do retrocesso – a enorme dificuldade de obtenção de dados e informações de indicadores governamentais, redução do orçamento nas pastas públicas que impactam diretamente nas condições do meio ambiente e por último a redução das taxas de participação política”, completou Denise.
Descaso do poder público
A mesa de abertura contou com a participação de Fernanda Kaingáng, advogada indígena atuante no Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI) e no Instituto Kaingáng (INKA), Naiara Bittencourt, advogada popular na Terra de Direitos e mediação de Denise Dora, advogada e diretora-executiva da ARTIGO 19.
A advogada Fernanda Kaingáng iniciou sua fala apresentando a situação dos povos indígenas do sul do Brasil, que têm enfrentando uma realidade completamente diferente de outros regiões do país devido ao descaso de autoridades governamentais em cumprir metas de fortalecimento para a população, colocando em risco a segurança alimentar de famílias, destruindo a biodiversidade e transformando o território indígena em “quintal do agronegócio”.
“De forma muito geral a gente assiste a um fracasso preocupante da Agenda 2030 da ONU que inicia dizendo que não vai deixar ninguém para trás, mas a minha impressão é que os povos indígenas foram deixados há muito tempo”, afirmou.
Para Naiara Bittecourt, advogada popular na Terra de Direitos, apesar do enfraquecimento dos espaços de denúncia internacionais, como é o caso da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos e o Conselho de Direitos Humanos da ONU, causado na maioria das vezes por uma abdicação de países em seguir recomendações, diretrizes e objetivos, ainda sim é extremamente importante seguir ocupando internacionalmente estes espaços. “Só assim podemos assegurar a execução e cumprimento de tratados e convenções que tem o papel de garantir, mesmo que de forma precária, algum direito aos povos”, disse.
Política e Direitos Humanos
Na segunda mesa esteve a deputada federal Maria do Rosário (PT), Reginete Bispo, socióloga e fundadora do Instituto Akanni e mediação de Ana Gabriela Ferreira, coordenadora de Acesso à Informação da ARTIGO 19.
De acordo com o relatório Luz, o Brasil se encontra distante da concretização do ODS 16, que trata da promoção de sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, do acesso à justiça para todos e construção de instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. Isso porque segundo dados apresentado durante o encontro, desde 2016 o percentual de investimento da União do Governo Federal é praticamente o mesmo. Além disso, com a implementação do teto de gastos, tivemos para 2019 a redução de cerca de 2 milhões nas verbas do Sistema Único de Saúde (SUS) e para o ano de 2020 um corte ainda maior. A projeção é que essa redução chegue a 30 bilhões de reais para o próximo ano orçamentário.
Em outras áreas, como por exemplo na educação, os cortes foram de 122 bilhões para 107 bilhões entre 2018 e 2019. O desemprego também aumentou cerca de 12%, enquanto a informalidade quase 45%.
É nesse cenário que o Brasil contabilizou no início da pandemia cerca de 1,5 milhões de famílias a espera do recebimento do Bolsa Família ou da Renda Emergencial. Cerca de 77 milhões de pessoas, quase 37% da população do Brasil, não tinham qualquer tipo de acesso ao saneamento básico, direito essencial para o controle e manutenção de segurança mínima no contexto de prevenção ao covid-19.
A coordenadora da área de Acesso à Informação da ARTIGO 19, Ana Gabriela Ferreira, lembra que a maior parte da população afetada pela falta de investimentos em áreas importantes para a garantia e efetivação de direitos é maioria na nossa sociedade. “Todos esses dados também podem ser evidenciados quando fazemos uma análise da sociodinâmica de construção do Brasil e percebemos que a maior parte das pessoas que vivem em situação de precarização são pessoas pretas, pardas e indígenas”, disse.
Reginete Bispo, socióloga e fundadora do Instituto Akanni, apontou a necessidade de contextualizar o termo política pública antes de fazer uma análise do cenário atual. Para ela, é impossível falar do tema sem que haja uma retrospectiva histórica. “Entender políticas públicas e população é partir do entendimento de que até bem pouco tempo elas foram feitas exclusivamente para um grupo étnico racial e dentro desse próprio grupo étnico racial alguns foram excluídos, como é o caso das mulheres. Falar de políticas públicas para a população negra e para as populações indígenas é algo muito recente e relativamente novo, visto que o temos foi inserido no nosso vocabulário nos anos 90”, revelou.
“A pandemia de covid-19 chegou num momento em que as políticas públicas que havíamos conquistado passava por um desmonte generalizado e esse cenário tem se intensificado com mais frequência”, completou Reginete.
A professora e deputada federal Maria do Rosário, assume destacando o momento extremamente difícil que o Brasil enfrenta diante da pandemia de covid-19 somada a situação complexa do cenário político no atual governo. “Cada vez mais o Estado brasileiro tem adotado uma linha descolada da realidade, pregando a desinformação e a não transparência, atacando de forma sistemática as instituições, negando a ciência e a contribuição das universidades, como também os saberes populares para o enfrentamento das crises, precarizadas condições básicas de vida e de dignidade para a população”, disse.
Trabalho digno
Por fim, na última mesa as participações foram de Giselle dos Anjos Santos, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), Márcia Soares, advogada e diretora-executiva da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos e mediação de Júlia Rocha, assessora de projetos na área de Acesso à Informação da ARTIGO 19.
Para o diálogo, a representante da ARTIGO 19 apresentou dados com um alerta: o Brasil tem vivido um momento de crescimento exponencial de desemprego. Em 2019 esse índice atingiu o mais alto número dos últimos anos já registrados, chegando a marca de 41%. Vale destacar que dessa massa populacional, 53,8% são mulheres e que pessoas brancas empregadas ganham cerca de 73,9% mais do que pessoas negras no mercado de trabalho. Os dados também revelam que 32,9% da população negra está abaixo da linha da pobreza e um aumento expressivo da extrema pobreza no país. No trabalho doméstico 93% da categoria são mulheres e 60% são mulheres pretas ou pardas. Desse total apenas 28% trabalham com carteira assinada.
“Falar sobre trabalho digno é importante justamente porque essa é a base para pensar a construção de uma sociedade mais justa. Isso porque essa discussão implica em falar também sobre o enfrentamento do racismo e da opressão de gênero, entendendo que essas desigualdades têm um caráter estrutural na nossa sociedade e que estão constituídas porque a população se mantém numa mentalidade racistas e escravocrata”, afirmou Giselle dos Anjos Santos, historiadora atuante no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).
Para Márcia Soares, advogada e diretora-executiva da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, falar de trabalho doméstico é falar de racismo estrutural. “O trabalho doméstico no Brasil e na América Latina, sintetiza a discriminação baseada nos marcadores do trabalho de gênero, classe e raça. Ela se alia a ideia de profunda servidão, que tem origem do trabalho escravo, com a ideia de que o trabalho é excepcionalmente feminino e que não gera valor. Com isso vemos a naturalização da discriminação e da exploração, que vai contra a ideia de garantia de direitos”, revelou.
O diálogo teve apoio financeiro da União Europeia e faz parte de um ciclo de debates que já percorreu outras quatro regiões do país e conta com a participação de especialista e convidados para discutir a situação e planejamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Saiba mais.
Assista na íntegra aqui.