A ARTIGO 19 se soma ao pronunciamento que reúne organizações de 12 países, além de grupos regionais e internacionais; nesse contexto, declarações recentes de líderes do governo sobre protestos sociais no Brasil são preocupantes e geraram pedido de explicação assinado por mais de 30 organizações
Decretar estados de exceção e emergência, toques de recolher e a suspensão de direitos como resposta à onda de protestos é uma a grave ameaça à democracia. Essa é a denúncia que fazem 138 organizações de direitos humanos distribuídas por 12 países da América Latina, junto de outros organismos internacionais, em um comunicado emitido esta semana em função da extrema gravidade do que se observou no último mês no Equador e no Chile.
Em um contundente posicionamento, o comunicado declara: “os padrões internacionais de direitos humanos determinam que atos de violência no contexto de um protesto nunca podem ser invocados para caracterizá-lo como violento em sua totalidade. Os contextos de protestos geralmente envolvem situações de conflito e tensão. Essas situações são amplamente rotuladas como ‘não pacíficas’ para negar os direitos que protegem os protestos sociais e os manifestantes. A visão totalizante sobre os protestos como violentos não deve se sobrepor às suas reivindicações de fundo: as desigualdades e carências sociais crescentes em uma região que há décadas se esforça para consolidar suas democracias. Pelo contrário, a força das democracias é demonstrada em sua capacidade de articular e canalizar politicamente o conflito. Assumir respostas de exceção e suspensão de direitos para responder a conflitos sociais é uma ameaça ao estado de direito.”
A carta, que faz uma breve contextualização dos protestos que eclodiram nos dois países em outubro, também declara preocupação com as declarações de outros líderes da região sobre o possível uso de tais medidas como resposta a conflitos políticos e sociais.
No Brasil, Jair Bolsonaro, declarou no dia 23 de outubro que havia acionado o Ministério da Defesa para monitorar possíveis protestos no Brasil. A ARTIGO 19, além de assinar a carta junto às 138 organizações latino-americanas, também integra o grupo de mais de 30 organismos brasileiros que pediu explicações sobre a declaração do presidente.
Na carta enviada à Procuradoria dos Direitos do Cidadão com um pedido de explicações ao Poder Executivo, as organizações afirmam que “O teor dessas declarações é profundamente inquietante, na medida em que — a depender do modo de execução das determinações presidenciais — pode-se configurar grave comprometimento de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos” (leia a carta na íntegra).
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) — filho do presidente — disse ainda em plenário no dia 29 de outubro que, se protestos como os que ocorrem no Chile acontecerem no Brasil, os manifestantes teriam de “se ver com a polícia”. Segundo o deputado, “a gente vai ver a história se repetir”, sem explicar a que fato histórico fazia referência, mas trazendo à tona memórias de um período sombrio da história brasileira, a Ditadura Militar. A ARTIGO 19 repudia veementemente as declarações, lembrando que o papel dos agentes do poder público é resguardar os direitos da população que representam e os princípios democráticos. É grave e inaceitável que sejam os promotores de violações, que empreguem os aparatos públicos para restringir direitos ou mesmo que mobilizem seus cargos públicos para serem agentes de propaganda da narrativas autoritárias.
Leia na íntegra a declaração conjunta de 138 organizações condenando o uso de estados de exceção:
Pronunciamento conjunto: Não se protege a democracia com a sua suspensão
Os estados de exceção, toques de recolher e militarização são respostas autoritárias que prevêem a suspensão de direitos e causam graves violações. Eles não resolvem conflitos sociais e colocam em risco décadas de construção democrática, que procuravam banir justamente aquelas práticas.
A América Latina é a região mais desigual do mundo, onde a maioria sofre desproporcionalmente os custos de políticas que restringem o acesso a direitos e beneficiam os mercados no curto, médio ou longo prazo. Neste momento, em alguns países da região, aumenta a desconfiança em relação aos partidos políticos e às instituições do Estado. Além da gravíssima declaração dos estados de emergência no Equador e no Chile, a figura também ronda outros países em situações diversas.
No Equador, os protestos aumentaram depois que o governo negociou com o FMI medidas que não continham nenhum mecanismo de participação ou consulta cidadã, como o fim do subsídio aos combustíveis, que implicou no aumento do custo de vida e consequente descontentamento social. Em 4 de outubro, o presidente Lenín Moreno transferiu o governo de Quito para Guayaquil e anunciou um estado de exceção em todo o território por sessenta dias. Com o decreto, ele mobilizou as Forças Armadas, suspendeu os direitos de liberdade de associação e reunião e limitou a liberdade de trânsito durante as 24 horas do dia. Os protestos continuaram por mais dez dias e a repressão policial e militar deixou pelo menos oito mortos, 1340 feridos e 1152 detidos, segundo dados da Defensoria do Equador. A escalada do conflito cedeu – devido à facilitação das Nações Unidas e da conferência episcopal – quando o presidente Moreno cancelou a remoção de subsídios no dia 13 de outubro. Em 14 de outubro, o estado de exceção e o toque de recolher foram suspensos, mas nos dias seguintes a criminalização de líderes políticos e sociais avançou com acusações judiciais de rebelião e insurreição e mandados de prisão.
Em 18 de outubro, o conflito social eclodiu no Chile. Este país possui uma das maiores taxas de desigualdade da região, marcos constitucionais herdados da ditadura militar e um índice de cerca de 60% de abstenção eleitoral, o mais alto da América Latina. Os protestos começaram contra o aumento das tarifas do metrô, que ressoou no acúmulo de demandas sociais de setores amplos, com manifestações massivas, incêndios e saques em todo o país. Tal como no Equador, a resposta do presidente Sebastián Piñera foi decretar estado de emergência e toque de recolher em várias regiões e localidades, incluindo a capital. Como conseqüência, tanques circulam por toda a cidade, as forças armadas foram às ruas com a atribuição de realizar detenções, em um quadro de restrição de direitos fundamentais. Neste contexto de militarização, foram registradas graves denúncias de tortura e violência sexual em detenções. No dia 27 de outubro, foi confirmada a morte de 19 pessoas e o Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) assumiu que pelo menos cinco foram causados por policiais e militares. Os números da INDH, atualizados constantemente, indicam que houve 3193 detenções – 343 são meninas, meninos e adolescentes – e que, dentre os mais de 1000 feridos registrados, pelo menos 570 foram atingidos por disparos de diferentes tipos de armas.
Os padrões internacionais de direitos humanos determinam que atos de violência no contexto de um protesto nunca podem ser invocados para caracterizá-lo como violento em sua totalidade. Os contextos de protestos geralmente envolvem situações de conflito e tensão. Essas situações são amplamente rotuladas como “não pacíficas” para negar os direitos que protegem os protestos sociais e os manifestantes. A visão totalizante sobre os protestos como violentos não deve obscurecer suas reivindicações de fundo: as desigualdades e carências sociais crescentes em uma região que há décadas se esforça para consolidar suas democracias.
Pelo contrário, a força das democracias é demonstrada em sua capacidade de articular e canalizar politicamente o conflito. Assumir respostas de exceção e suspensão de direitos para responder a conflitos sociais é uma ameaça ao estado de direito.
Como organizações de direitos humanos, políticas e sociais na América Latina:
Solicitamos a cessação imediata dos estados de exceção e emergência e dos toque de recolher no Equador e no Chile e a retirada das forças armadas das tarefas de segurança.
Reiteramos a obrigação dos Estados de investigar mortes e outras violações dos direitos humanos com prontidão, eficácia e imparcialidade, e não criminalizar protestos sociais.
Conclamamos a OEA e a ONU e seus mecanismos de proteção dos direitos humanos a tomar uma posição clara sobre o emprego de medidas de exceção e de suspensão de direitos.
Expressamos nossa preocupação com as declarações de outros líderes da região sobre o possível uso de tais medidas como resposta a conflitos políticos e sociais, que acabam erodindo a legitimidade de processos democráticos e dos projetos populares.
Foto: Carlos Figueroa/Wikimedia Commons
Tradução: Laura Valente