Esta entrevista exclusiva com o escritor Anderson França, que relata a história de um comunicador sob ameaça e discute a condição de comunicadores nas periferias, faz parte do relatório anual da ARTIGO 19 “Violações à Liberdade de Expressão”, lançado em maio de 2019.
A sétima edição da publicação compila e analisa as graves violações contra comunicadores registradas e apuradas pela organização em 2018 no Brasil. Ao todo 35 casos de graves violações, sendo 26 ameaças de morte, quatro homicídios, quatro tentativas de homicídio e um sequestro. Comparados ao ano anterior, em que a organização registrou um total de total de 27 casos, os números evidenciam um aumento de cerca de 30% nas graves violações (baixe a publicação aqui).
Motivado pelas ameaças que vem sofrendo há tempos, o escritor, empreendedor e comunicador decidiu deixar o Brasil ao final de 2018.
Autor do livro de crônicas Rio em Shamas e criador do projeto de educação e empreendedorismo popular, Universidade da Correria Anderson França é nascido na zona norte do Rio de Janeiro. Em suas crônicas, retrata o cotidiano da vida urbana e seus personagens com a agilidade da linguagem informal e popular, atento aos pequenos e cômicos absurdos do cotidiano. Voz ativa nas redes sociais, o escritor também discute com frequência temas ligados à política, racismo, ações policiais e seus impactos para a população periférica.
Confira abaixo a entrevista:
Anderson, você tem uma atuação muito diversa você é empreendedor social, escritor, professor e dentre tudo isso você também é um comunicador. Em quais espaços que você tem exercido e exerceu o seu trabalho como comunicador?
Bom, espaços corporativos que me pagaram foi a TV Globo, a Conspiração Filmes, a fábrica produtora e a Companhia das Letras. Eu acho que foram esses os trabalhos mais relevantes. Trabalhos também remunerados e menores: para a Fundação Telefônica, Brasil
Foundation, ImpactHub no Brasil. Todos esses pequenos trabalhos dialogavam com a realidade de periferia, então eles precisavam de um comunicador que tivesse capilaridade na periferia para falar por eles. Fora isso, os trabalhos de comunicação que eu fiz bem na base, o primeiro foi o AfroReggae.
Uma coisa importante de 2010 para cá, é que os ativistas passam a ter mais acesso à internet. O próprio smartphone e sua tecnologia, as redes sociais, que também vieram de 2010 para cá, e a política de crédito que Lula cria para a gente poder comprar um celular, todos esses fatores foram determinantes para que uma pessoa de favela tivesse acesso à rede. E eu sou dessa geração aí, dessa primeira geração de comunicadores de periferia que entrou na rede. Quando você é da Periferia, você precisa ter público para poder se comunicar, então é uma riqueza muito grande, é um capital muito grande ter esse tipo de rede.
Pensando um pouco nesse papel de um comunicador na periferia, o que é exercer esse papel e quais riscos você considera que esse trabalho envolve?
Eu acho que, olhando para trás, para os últimos 9 anos, o comunicador de periferia descobriu uma fórmula para alcançar um público muito grande sem necessitar de um jornal, sem necessitar de uma mídia tradicional, de uma mídia remunerada. Então, muitas vezes um escritor de periferia pode ser mais lido que um colunista de Globo, que um colunista de Jornal do Brasil, o que faz até com que alguns sejam contratados para escrever nos jornais.
Então essa forma de “democracia” das redes é o que talvez mais signifique ser comunicador de periferia: é você conseguir ter acesso a muitas pessoas que você não tinha antes. E isso é positivo em muitos sentidos, porque as pessoas passam a te ler diariamente.
O risco disso é que não só as pessoas que concordam contigo vão te ler. As pessoas que você critica, os policiais, vão te ler. Então, se você criticar policiais, os policiais vão ler você. Se você criticar traficantes, os traficantes vão ler você. Se você criticar políticos, os políticos vão ler você. Então, o risco é que quem te lê não é só gente que te admira, mas gente que começa a perceber o seu lugar na sociedade e busca também disputar com você uma narrativa. E quando você mora na periferia, essa disputa de narrativa ela, invariavelmente, pode envolver violência.
O silenciamento de pessoas na periferia é algo exposto e as pessoas estão muito vulneráveis por causa da ausência de direitos civis plenos na periferia. Raul Santiago [ativista social e membro do coletivo de comunicação Papo Reto, formado por moradores do Complexo do Alemão e Penha no Rio], ele hoje é um cara ouvido por milhares de pessoas, mas ninguém garante a segurança dele, ele continua no mesmo lugar. Ele continua sob os mesmos efeitos da violência que ele denuncia. Então os riscos são muito grandes. E aí só piora na medida em que você envolve os recortes de gênero e de raça: se você é uma mulher, se você é gay, se você é preto. Dentro da periferia tem a questão do território, gênero, classe e raça.
A condição e segurança do comunicador de periferia, ela é frágil?
São duas eras muito diferentes: quando a gente é comunicador no período do Lula, na década em que o governo do PT estava no poder; e na década em que se estabelece o golpe e a ascensão de Bolsonaro. São duas periferias diferentes, são dois países diferentes, na verdade. A América Latina nesse período todo, nesses últimos 20 anos acho, vai fazendo uma curva à direita, uma curva às vezes violenta. E hoje, o Brasil que nós temos é um Brasil em que a própria periferia apoiou o Bolsonaro. Então, a sensação de desterro, a sensação de não apoio que nós temos na periferia é muito grande.
O primeiro exílio que o comunicador de Periferia está sofrendo hoje no Brasil é dentro da própria Periferia. Ele já não é entendido mais lá dentro, ele é desprezado, ele é rejeitado dentro da periferia, que também se torna um lugar violento para ele do ponto de vista narrativo. A igreja não quer saber dele. O mercado, o mercadinho, o açougue, a escola não quer saber desse cara. Ele é um problema, ele é um ‘comunista’. Então ele já começa a ser exilado dentro.
A gente tem visto no nosso trabalho muitos comunicadores que manifestam uma condição de risco, que publicizam que estão sofrendo ameaças e são deslegitimados publicamente. Isso toca no que você fala da insensibilidade à violência. Como é que se pode construir uma permeabilidade a essas situações, ao que pessoas como você, por exemplo, estão vivendo?
Eu nunca passei pelo que eu estou passando, então eu não sei exatamente como responder essa pergunta. Mas eu quero acreditar que existe alguma saída para que se crie sensibilização com essas pessoas. E ao pensar em saída, eu tenho que pensar em diálogo; e ao pensar em diálogo, eu tenho que pensar em ceder. E ao pensar em ceder eu tenho que pensar em entender a linguagem e o tempo onde essa pessoa está, que não é o meu.
E aí reside uma crítica minha: a academia não é capaz de fazer isso hoje. Porque a academia quando olha para a igreja evangélica, ela olha de uma forma exógena, e de uma forma preconceituosa com relação a fé popular, que a fé popular brasileira estava resolvida entre o catolicismo não praticado e as matrizes africanas que eram fetichizadas. Mas você tem uma prática religiosa acontecendo, para o bem ou para o mal, nas camadas populares, que é a igreja neopentecostal. E para você dialogar com esse sujeito, você precisa estar sensível a cosmovisão que esse cara tem do mundo, que é monoteísta e conservadora. Se você não consegue ter sensibilidade primeiro com o mundo desse cara, você não vai conseguir nem sensibilidade pra entender o teu mundo. Aí é que reside o grande desafio pra muita gente hoje da esquerda e que foi chamada atenção pelo Mano Brown.
E, nesse sentido da sensibilização, o comunicador de periferia não poderia exercer um papel? Ou esse papel está silenciado, esse papel não está sendo exercido como poderia?
Então, o comunicador de periferia ele exerce esse papel internamente, muitas vezes tentando explicar o mundo para o periférico. Mas esse comunicador de Periferia ele não… Repara bem: os grandes comunicadores de periferia não são de esquerda, ou não são prioritariamente de esquerda. Eles são pessoas que compreendem as nuances locais, compreendem as dificuldades do outro, o outro dele, o periférico, e não jogam pesado no discurso político e ideológico. Eles fazem uma coisa mais soft, mais diálogo.
Pensando um pouco nessa posição do comunicador de periferia, independente do lado político para o qual ele vá, você está dizendo que ele está numa outra posição de escuta. Não é só o que essa pessoa está dizendo para os outros, ela está numa outra posição de escuta com seu público.
Principalmente essa posição. Porque o comunicador de periferia, ele joga em duas frentes: ele ouve de dentro e leva para fora, ele ouve de fora e leva para dentro. Então ele acaba fazendo uma escuta dos dois lados. E ele meio que tenta, com os recursos dele, filtrar ou interpretar para cada lado o que está acontecendo. O comunicador de periferia é um grande mediador social que fica de um lado e de outro o tempo todo levando comunicação.
Nenhum conteúdo nasce só na gente, nasce no contexto. A gente pensa que pelo cara não ter frequentado faculdade, pelo cara não ter muito repertório, ele só olhou aquilo, escreveu, ele não foi capaz de uma análise intelectual sobre aquilo. E ele foi. O sujeito da periferia, o comunicador, ele é capaz de análise, ele é capaz de elaborações. Eu estou falando com você aqui, boa parte das palavras que eu estou articulando para falar com você foram aprendidas ao longo dos anos, de outros jornalistas, de outros acadêmicos, de pessoas que eu peguei essas palavras. E uso palavras num determinado contexto para poder destravar em você o sentimento de que eu posso falar a mesma língua que você.
Mas se nós estivéssemos hoje numa favela, uma roda de conversa, você veria que eu falaria uma linguagem diferente. Ou seja, o sujeito da periferia, ele é capaz de articular e de elaborar o pensamento, de elaborar até os vocabulários, os dialetos, para conseguir falar com cada público especificamente. A minha linguagem original, cara, a minha linguagem é outra, minha linguagem é de periferia. E lá a gente fala um monte de gíria. Mas a gente aprende inclusive a falar a linguagem do asfalto e a linguagem de dentro. Todas essas páginas de humor, Nordeste da Depressão, Olinda da Depressão, Suburbano da Depressão. O pessoal que faz isso é gênio.
Eles conseguem, aos poucos, fazer uma etnografia deles mesmos a partir do humor. Esse maluco aí, o Whinderson, esse cara aí é um gênio. O outro maluco lá, Lucas Albert, o outro lá, que fazem um negócio no Instagram enorme, um dos maiores do mundo, dentro de uma vila no nordeste. Esses caras são geniais. Isso não tem aqui [na Europa], cara.
As ameaças que você sofreu ali logo antes da FLIP, em 2017, Elas ganharam uma repercussão muito grande. Mas elas foram só um dentre vários outros episódios vividos por você. Você podia contar um pouco para gente desses episódios?
2018 teve a ameaça do Marcelo, do grupo do Marcelo, que continuou de 2017 para 2018. O mesmo grupo continuou mandando ameaças por e-mail e mesmo com o inquérito aberto, que culminou com a prisão dele, eu recebi outras mensagens que diziam que não adiantava ele ser preso, que eles iriam me achar. Inclusive essas mensagens duraram mesmo quando eu cheguei em Portugal. Essas mensagens eu divido por categoria: desde mensagens de caixa de mensagem, por e-mail. Já chegou por telefone, descobriram uma vez. Invasão de residência, que foi a mais grave. E grampo também, já aconteceu.
Ameaças visando sua vida e ataques físicos?
É, explicitamente e com todas as palavras e dizendo o que faria. Explicando que vai esquartejar, dizendo exatamente… Foi a mesma galera que fez com o Jean [Willis] e que fez com a Lola [Aronovich, blogueira e professora universitária]. A mesma galera.
E tem um perfil, um padrão no perfil desses agressores? Um padrão?
Tem um padrão na linguagem, um dos padrões é linguístico. Todos eles se preocupam muito em explicar o tipo de prática para tortura e crime. E essa preocupação acaba revelando que as práticas são similares. A impressão que dá é que todos leram o mesmo negócio para falar o que vão fazer. Então parece que tem uma única fonte de informação que diz: é para esquartejar, depois para tacar fogo, colocar num saco preto e etc. Então dá a entender que é o mesmo grupo falando, porque todos apresentam ameaças similares.
Outro padrão é que me parece que são homens brancos, e que estão associados à tecnologia, aos games, ou aos fóruns de internet em que se passa muito tempo junto. E a presença permanente esses homens juntos gera um ambiente de permissividade e de falas mais homofóbicas, xenofóbicas e racistas. Eu participei de um desses para ver quem é que estava me ameaçando e vi que eles falam de jogos. São homens que ficam jogando, e são homens desempregados, são homens que não querem emprego, não tem relacionamento social permanente, tem problemas com mulheres e ficam em casa acessando a internet por longas horas sem trabalhar, e as suas frustrações vão gerando ódio. Eles se odeiam e projetam o ódio nos outros.
A violência e as ameaças foram um elemento central para sua saída do país. Mas antes de deixar o Brasil como que essas ameaças interferiram no seu cotidiano? Que efeitos que essa violência constante, essas mensagens, essas ações, produziram na vida cotidiana?
Então, desde o primeiro aspecto que é o psicológico, até o de mobilidade mesmo e liberdade. Você lidar com 6 milhões de pessoas por mês – quem lê minhas coisas é isso – você começa a desconfiar de todo mundo. Então, por exemplo, na minha página, qualquer mínima ofensa pessoal eu bloqueio a pessoa, porque eu não sei se essa pessoa está sendo ela mesma ou se existe alguma coisa por trás dela. E essa é uma política que eu assumi e não vou mudar. Mas isso já é uma perda de liberdade. Porque eu deixava antes todo mundo escrever, agora eu não deixo mais. Aí, em se tratando de zona norte e Rio de Janeiro, eu já não iria a todos os lugares, com medo de certos horários, com medo de certos lugares. E as pessoas sabiam onde eu morava. Uma dessas pessoas tirou uma foto da minha mãe numa feira, dizendo que ia matar ela. Então a restrição de liberdade na prática foi muito grande. E quando o Bolsonaro se elege de fato, ali ficou consolidado que nós não podíamos mais ficar naquele lugar. Então, a sensação ela vai do medo para uma sensação muito maior de desamparo e de insegurança, que é muito grande.
Pensando um pouco nos seus textos e na sua trajetória, uma coisa muito marcante é que você mudou muito de casa. E agora você mudou de novo, talvez a mais radical dessas mudanças. Como é que é essa questão hoje de casa, você sente que você tem uma casa?
Não, não tem mais não. Isso acabou. Esse sentimento de casa acabou mesmo. Eu fiquei em Londres esses dias trabalhando lá, quando eu voltei para cá eu não voltei para casa, eu voltei para cá. Aqui não é a minha casa. A nossa saída não é exatamente planejada, a gente não veio estudar, a gente não veio trabalhar, a gente não quis vir. A gente teve que vir. E não existe pra mim sentimento de casa. Quando eu olho para trás, para o Brasil, também não é mais minha casa. Porque se tornou um país que eu não reconheço mais. E não foi o país pelo qual eu lutei. Isso que está aí, não é o que eu lutei.
Mas agora tem muita coisa nova que você está construindo, com projetos que se expandem para diversos países. Você está em uma vida itinerante, digamos assim?
É, é bem isso mesmo. Você passa a ter uma… você passa por um processo esquisito de criação de uma persona pública. Marina [Silva] me ajudou a entender a importância de falar. Quando Marina abre a boca para falar com a imprensa, ela está sendo Marina. A construção de muitos anos de narrativa. Então eu estou passando por isso aqui. Quando eu vou na Universidade de Cambridge, eu falei numa palestra que tinha professor de primeiro-ministro da Inglaterra. O cara estava me vendo. Eu fui em Oxford, tinha gente importante para caralho. quando você se coloca para uma plateia tão grande em termos de relevância acadêmica, e você não é nem acadêmico, você precisa exercer, fazer o exercício de se construir publicamente. Então você não tem mais casa, você tem a si mesmo, você tem a sua história, a sua narrativa, o lugar onde você mora é a tua narrativa.
A ARTIGO 19 valoriza a liberdade de expressão e multiplicidade de perspectivas e vozes, as opiniões expressas nas entrevistas não necessariamente representam os posicionamentos da organização.