A terceira entrevista do especial “Mulheres de Expressão: liberdade de expressão e comunicação” é com a jornalista Juliana Cézar Nunes, doutoranda da UnB que falou sobre o direito à comunicação e políticas públicas.
Essa conversa faz parte de uma série de entrevistas que estão sendo lançadas semanalmente nos canais de comunicação da ARTIGO 19. Ficou interessado/a? é possível conferir as entrevistas anteriores aqui.
Leia abaixo a entrevista na íntegra:
Qual a importância de políticas públicas de comunicação para as agendas políticas de mulheres negras?
Eu diria que se o país implementasse essas políticas, a agenda das mulheres negras já estaria em outro patamar. De forma geral, o Brasil não tem avançado nas políticas públicas que fortaleçam a atuação das mulheres negras e que pensem o direito e o acesso à comunicação como algo fundamental. Alguns acordos internacionais dos quais o país é signatário, especialmente Durban, falam sobre a comunicação como um direito e principalmente como algo muito importante para a população negra. O movimento negro também lutou por isso na Constituição, em diversas conferências, políticas (da saúde da população negra, por exemplo) e no Estatuto da Igualdade Racial. Sempre atento ao histórico de vozes silenciadas como estratégia do racismo. E o fato é que, apesar de todo esse amparo e essa luta, as mulheres negras ainda continuam tendo que enfrentar diversos obstáculos para atuar no campo da Comunicação.
Em geral, elas desenvolvem projetos que não contam com o apoio do Estado. Pontualmente, conseguem financiamento internacional ou colaborativo. Em geral, são projetos autônomos de coletivos de mulheres que não têm atividades remuneradas. Todo esse esforço se dá porque a comunicação é um ambiente estratégico para o movimento negro. E se pararmos para pensar lá atrás, vamos ver que sim, a comunicação sempre foi uma prioridade para a população negra e está sendo sempre priorizada em suas mais diversas formas.
A internet é um espaço importante para isso, pois você vai ver uma movimentação de mulheres negras e mulheres quilombolas que fazem uma série de debates cruciais. Seja em mídias negras, seja nas redes sociais. O jornalismo independente é outra via importante, assim como os projetos de comunicação comunitária e comunicação pública. Essas alternativas são fundamentais de se pensar, pois é a representatividade e o empoderamento que contribuem para que vozes possam ser intensificadas e, não, silenciadas. É essa pluralidade de vozes que vai garantir o avanço da agenda política das mulheres e a democracia.
De que forma as políticas públicas podem contribuir com a representação da mulher negra, cis e trans na mídia tradicional?
Eu acho que se todos esses acordos e estatutos fossem cumpridos já seria um grande avanço. O problema é que isso tem sido ignorado. Se o Estado reconhecesse o trabalho e a importância do financiamento de projetos de comunicação para a população negra, muitos estariam acontecendo. Pensar o financiamento é pensar em contribuições para o audiovisual e outras áreas que não impeçam essas mulheres de ocupar esses lugares e amplificar suas vozes e olhares. O problema é que isso implica em redirecionar recursos e, principalmente, contrariar interesses. Setores como o agronegócio e a mineração, que financiam a mídia tradicional, estão interessados em ver as mulheres quilombolas entrevistadas e autoras de suas próprias histórias? As forças policiais querem ver no jornal a fala de mulheres negras que denunciam o genocídio da juventude negra? Não podemos esquecer que a comunicação é um campo de batalha por poder. Se perdemos essa dimensão, perdemos o sentido da luta por esses direitos. Se as mulheres negras fossem representadas com dignidade na mídia e sua agenda política tivesse visibilidade, a correlação de forças na sociedade mudaria muito.
De maneira estrutural, as mulheres negras sofrem com a falta de acesso e de garantia à comunicação e à liberdade de expressão. Na atual conjuntura do país, os desafios para a promoção da liberdade de expressão e do direito à comunicação são maiores?
Acho que sim. Essa conjuntura tem evidenciado os diversos ataques que as mulheres negras vêm sofrendo por exercerem sua liberdade de expressão. E isso tem acontecido porque lideranças negras, mulheres negras se posicionam sobre as opressões de racismo, machismo, lesbofobia, transfobia e discriminações em geral. Eu acho que nós temos caminhos para trabalhar essa questão. Tem o caminho dos projetos autônomos e independentes, o caminho do Judiciário, que vai resultar em instrumentos como o direito de resposta.
E você também tem uma via importante de atuação, que é a própria academia, que vai tanto mostrar e fazer um diagnóstico do problema, quanto também apontar caminhos sobre como fazer esse enfrentamento. As mulheres negras têm tido um protagonismo em todas essas áreas e em todos esses caminhos. E isso não pode ser negligenciado. As mulheres negras estão cada vez mais capacitadas e atuantes dentro dos veículos de comunicação. E isso é tanto para ter os seus próprios meios, seus próprios veículos, quanto para conquistar mais espaço de trabalho nos veículos tradicionais.
Estamos em 2019 comemorando uma mulher negra na bancada do Jornal Nacional. Então quando a gente olha para essa população, a gente vê o quanto ela está sendo violentada.
As mulheres negras que atuam na comunicação têm múltiplas atividades profissionais, acadêmicas e militantes para tentar colocar essa condição em um outro patamar. Elas não conseguem desenvolver um trabalho em uma área e serem devidamente remuneradas por isso. Precisamls estar atentas a isso. Mas, de forma geral, é interessante reforçar que, por outro lado, a comunicação abriu vários espaços e tem garantido, minimamente, um espaço de luta das mulheres negras nos mais diferentes aspectos.
Você sofre ou já sofreu ataques motivados por exercer sua liberdade de expressão ou profissão?
Sim. Já passei por diversos episódios de restrição ao exercício profissional e assédio por ser uma jornalista negra que tem o olhar voltado para pautas relacionadas aos direitos da população negra, indígena, questões da infância, políticas sociais, direitos humanos. Impressionante como o racismo é eficiente até nisso. Corpos brancos, especialmente masculinos, ocupam o lugar da neutralidade, da objetividade, da imparcialidade, mesmo quando esses corpos habitam espaços de poder masculino branco, como a bolsa de valores, e defendem em suas reportagens os interesses dos setores econômicos que mais lucram no Brasil. Herdeiros do sistema colonial e beneficiários da escravidão. Mas uma profissional negra que utiliza técnicas jornalísticas e observa os preceitos constitucionais da igualdade e da equidade é lida como partidária, mesmo sem filiação, ‘afroxiita’, ideológica, tendenciosa. É assim que o racismo opera para tentar nos calar.
Já fui impedida de mediar uma entrevista sobre apropriação da cultura negra por pessoas brancas porque uso turbante. Isso sem nem ao menos ser perguntada o que acho sobre o uso de turbante por pessoas brancas. Ninguém vê problema em uma jornalista branca sem turbante mediar uma discussão dessas, né? As tentativas de restrição são cotidianas. Dentro e fora da redação e agora nas redes. Algumas vezes mais evidentes, outra vezes travestidas, mas sempre presentes. A diferença é que, agora, estamos mais unidas e fortes, emocional e profissionalmente, para enfrentar esses ataques.
Que transformações positivas ou aprendizados podemos ter ao ouvir as vozes das mulheres negras neste momento do país?
Sua pergunta remete a um dos poemas mais preciosos de Conceição Evaristo. As vozes das mulheres negras ecoam rimas de sangue. Mas também ecoam vida-liberdade. E não tenho dúvida de que garantir essas vozes nas coberturas jornalísticas é fundamental para que o país caminhe rumo a um outro patamar civilizatório. É da luta e da vivência de mulheres que vai emergir um novo projeto de país. Um país que as mulheres negras gestam há muito tempo. Gestam e sustentam. Mas que o racismo e os racistas não permitem que nasça pois estão agarrados aos seus privilégios e riquezas.
Nossos espelhos são Luciana Barreto, Maju, Sueide Kintê, Preta Rara, Camila de Moraes, Viviane Ferreira, Kelly Quirino, Dione Oliveira Moura, Ana Flávia Magalhães, Djamila Ribeiro, Selma Dealdina… Jornalistas, pesquisadoras, professoras, cineastas, influenciadoras e quilombolas.
As vozes de mulheres negras que hoje já ecoam em tantas plataformas e palcos nos mostram caminhos diferentes e bem mais solidários e generosos de comunicar, empreender, aprender, amar e viver. Não são caminhos fáceis de trilhar. Mas são os nossos caminhos e não vamos abrir mão deles.
A ARTIGO 19 valoriza a liberdade de expressão e multiplicidade de perspectivas e vozes, as opiniões expressas nas entrevistas não necessariamente representam os posicionamentos da organização.