Mudanças na estrutura do governo: pontos de alerta para garantia da liberdade de expressão e direito à informação

As organizações da sociedade civil começaram o ano em alerta no Brasil. Entre as primeiras medidas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL), houve mudanças na estrutura e competências de ministérios e órgãos importantes para a materialização de políticas públicas e direitos fundamentais.

A ARTIGO 19, como outras organizações da sociedade civil brasileira, está acompanhando as mudanças, reafirmando sempre seu compromisso em fortalecer a liberdade de expressão, o direito à informação e os direitos humanos da população brasileira como um todo – sem seletividade, sem apagar sua diversidade ou ignorar desigualdades. A partir de uma trajetória de monitoramento e diálogo com o poder público, nossa equipe analisou o que mudou em 2019, considerando as cinco frentes que estruturam nosso plano estratégico de atuação até 2021: transparência, espaço cívico, direitos digitais, mídia e proteção. Abaixo segue uma síntese das mudanças e dos pontos de alerta:

Autonomia das organizações sociedade civil

A Medida Provisória nº 870, editada em 1º de janeiro de 2019, prevê a supervisão, coordenação, monitoramento e acompanhamento das atividades das organizações da sociedade civil e de organismos internacionais pela Secretaria de Governo da Presidência da República.

O texto sinaliza para um cenário de restrições indevidas aos pilares que sustentam uma sociedade civil livre e independente. Em um Estado democrático, a atuação da sociedade civil organizada deve ser guiada pela autonomia em relação ao governo, tendo em vista o seu papel de avaliadora dos processos que envolvem assuntos de interesse público. Nesse contexto, ressalta-se a ilegalidade da medida por atentar diretamente contra o preceito de independência das organizações não-governamentais.

O relatório Agenda de Expressão (Expression Agenda ou XPA), publicado pela ARTIGO 19, já indicava que limitações diretas e indiretas às atividades da sociedade civil têm sido uma tendência global por parte de diversos governos que utilizam mecanismos legais e econômicos para restringir a atuação das entidades.

Em resposta a todos esses movimentos, os organismos internacionais de direitos humanos vem manifestando a sua preocupação e apelando para que os Estados garantam um ambiente de diversidade e pluralismo de ideias, no qual haja o livre debate e a possibilidade de vozes dissidentes serem plenamente ouvidas e atuantes.

Além disso, o fato do Ministro-Chefe da Secretaria de Governo ser um membro das Forças Armadas agrava ainda mais o cenário e traz um alerta em relação à fragilidade da democracia brasileira. Organizações sociais referem-se ao espaço público e cívico enquanto as Forças Armadas atuam no âmbito da Segurança Nacional ou Defesa – o que absolutamente não está relacionado com ONGs ou movimentos sociais.

Relações exteriores

Outro aspecto preocupante do governo que se inicia é a nomeação do diplomata Ernesto Araújo para a chefia do Ministério das Relações Exteriores. A sua indicação sinaliza o rompimento com o modelo de política externa praticado até então pelo Brasil, cujo aumento contínuo do protagonismo em espaços internacionais estratégicos conquistou garantias importantes no âmbito dos direitos humanos.

No entanto, o novo chanceler, em diversas oportunidades, já se posicionou de forma muito clara desvalorizando os mecanismos internacionais e a atuação conjunta com outros países, ficando evidente que sua visão sobre os direitos humanos, até então uma das principais pautas internacionais, vai na contramão da trajetória que vinha se consolidando. Dessa forma, a nomeação de um Ministro que rompe com a tradição brasileira de valorização do multilateralismo e cumprimento de tratados internacionais é extremamente preocupante em um contexto que exige que os esforços para a garantia dos direitos humanos no plano internacional continuem – e não retrocedam.

Uma evidência negativa dessa tendência é a já anunciada saída do Brasil do Pacto Global de Migrações da ONU, que traz importantes elementos para a liberdade de expressão, acesso à informação, para o debate público inclusivo e para coibir o discurso de ódio em relação a migrantes (saiba mais no posicionamento da ARTIGO 19, disponível em inglês).

Comunicadores e liberdade de imprensa

A relação do novo governo com o trabalho de comunicadores mostra-se conflitiva já desde o primeiro dia de mandato. Relatos de jornalistas de veículos diversos apontaram restrições e constrangimentos sem precedentes ao trabalho da imprensa numa cerimônia de posse presidencial sob a justificativa de manutenção da segurança.

As redes sociais, em especial o Twitter, tem adquirido protagonismo como canais de comunicação do governo, sendo ali, inclusive, que informações centrais ao funcionamento da máquina pública tem sido eventualmente divulgadas, como a escolha de ministros. Não à toa, o Twitter do presidente já é apelidado de “novo diário oficial”. Neste sentido, tal espaço torna-se fonte primária e fundamental de informações não a respeito de indivíduos, mas de pessoas públicas. É preocupante, contudo, o comportamento do presidente neste ambiente, já tendo bloqueado diversos jornalistas.

Além do gesto ser uma demonstração pública de que esses profissionais estão barrados do acesso a uma fonte de informações primária, trata-se também de sinal de intolerância à presença de comunicadores.

A desqualificação do trabalho de setores da imprensa feita por membros do governo é declaradamente assumida. Mais do que declarações críticas, a descredibilização de comunicadores abre margem para ataques, ofensas e ameaças a estes profissionais por parte de apoiadores do governo, ocorrências cujo número e intensidade vem aumentando desde a corrida eleitoral.

Considerando esta relação combativa e de tensão, é preciso acompanhar se serão mantidas na nova gestão federal órgãos e conquistas institucionais voltadas à proteção de comunicadores. Dentre elas, destacamos o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), que em setembro de 2018 passou a incluir em seu escopo comunicadores sociais. Criado em 2004 no então Ministério dos Direitos Humanos, o programa estabelece diretrizes de proteção para pessoas e entidades em risco devido a seu trabalho em defesa e promoção dos direitos humanos.

Para que o programa possa atuar com eficácia, é preciso que o poder público efetivamente reconheça as condições e situações de violência pelas quais comunicadores passam no país. Além disso, é fundamental que se ampliem os setores envolvidos em seu conselho deliberativo, cuja composição ainda exclui membros da sociedade civil.

Direitos digitais

A reestruturação do executivo promovida pelo novo governo desconsiderou qualquer órgão específico para políticas digitais e pulverizou, sem fortalecer, os temas da segurança da informação, governo eletrônico, dados pessoais, arquivos e memória, sistemas de inteligência e políticas de inclusão digital, telecomunicações e radiodifusão por boa parte da recém criada estrutura.

Estes órgãos e políticas são fundamentais para o avanço de conquistas no campo dos direitos digitais e merecem forte atenção da sociedade brasileira para que não sejam relegados ou mal gerenciados. Vale notar que órgãos e programas importantes para políticas de direitos digitais como o GESAC (Ministério das Comunicações), a SENACOM (Ministério da Justiça) ou a Agencia Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e o Conselho Gestor da Internet no Brasil (CGI) ainda esperam decisões específicas sobre seu rumo ou continuidade, o que traz também um alerta sobre o papel destas entidades na vida nacional nos próximos quatro anos.

A intenção da militarização do gerenciamento de sistemas digitais de segurança, bases de dados e tecnologias de informação, através da alta participação de quadros das forças armadas no governo é também um ponto de alerta, dada a vocação de vigilância e controle que faz parte das forças de segurança.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública segue hospedando o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, além dos Conselhos Nacional de Arquivos e o Arquivo Nacional, órgãos sensíveis para a conservação da memória, e processos de digitalização de conteúdos relevantes para a vida nacional. O ministério aumentou em estrutura e relevância nesse governo, o que potencializa sua capacidade de vigilância e controle em massa através de políticas de segurança pública, compartilhamento de informações sensíveis e integração de sistemas digitais para o combate ao crime – políticas que seguem sendo coordenadas pela pasta.

Ao mesmo tempo, pouco se dedicou até agora para áreas das telecomunicações digitais como Rádio digital, TV digital interativa, inclusão digital e multiplicação dos canais para a expressão dos diferentes setores da sociedade.

Um outro ponto fundamental, dada a enorme importância que a Internet teve no período eleitoral, é a maneira pela qual os órgãos oficiais tratarão a liberdade na rede. As políticas de comunicação digital da presidência, seus sistemas de informação e políticas oficiais para telecomunicação e comunicação governamental estão concentradas na Secretaria de Governo, através da SECOM. Uma Assessoria Especial do Presidente da República mantém, inclusive, a incumbência de gerenciamento das contas pessoais das redes sociais do presidente. As políticas de segurança de dados, segurança digital, inteligência e informação estão sob responsabilidade do Gabinete de Segurança Institucional. Assim, há que se ter atenção ao papel das redes sociais, aos projetos de leis relativos ao tema de Fake News e Desinformação, bloqueios de conteúdo e medidas judiciais para violar a liberdade de expressão no ambiente digital.

Finalmente,  foi criada a Autoridade Nacional de Proteção de Dados pessoais, vinculada à Presidência da República, com aparente autonomia técnica, mas sem independência orçamentária. A Medida Provisória que a criou (ainda do governo anterior) modificou também outros aspectos do texto da lei aprovada por unanimidade nas duas casas legislativas.

Gênero e acesso à informação

As mudanças ocorridas na estrutura do antigo Ministério dos Direitos Humanos, atual Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, além de sinalizarem um potencial retrocesso na defesa de direitos no país, podem representar um sério entrave aos trabalhos que realizamos com acesso à informação e populações vulnerabilizadas, além de ameaçar as importantes conquistas em relação aos direitos das mulheres e pessoas LGBTQI.

A forma pela a qual o atual governo aborda questões ligadas à população LGBTQI é preocupante. A temática, que contava com projeção desde o programa Brasil sem Homofobia de 2004, foi oficialmente extinta das subsecretarias do Ministério, o que dificultará a criação e implementação de políticas públicas (e a defesa das poucas que já existem) referentes a essa população. Sobretudo, a perda de relevância deste segmento nas políticas do governo federal dificultará a produção de informações que lhe digam respeito (desde como acessar serviços básicos de saúde e cidadania até estatísticas relevantes).

Isso já se exemplifica na retirada do ar da única cartilha online sobre saúde transmasculina, elaborada pelo Ministério da Saúde. Isso pode representar um empecilho ao acesso da população transexual masculina a informações de alta relevância para sua saúde – e, consequentemente, à concretização de direitos humanos básicos de acesso à saúde, dignidade e cidadania.

Meio ambiente e mudanças climáticas

Meio Ambiente é um tema que também traz preocupações. Dada a nova organização estabelecida pela medida provisória, observou-se um esvaziamento de funções do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Notoriamente, a extinção da Secretaria de Mudança do Clima e Florestas (agora, uma assessoria especial com estrutura menor que a extinta secretaria) e a transferência do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) são exemplos importantes de pautas centrais para o meio ambiente que saíram da pasta.

A expectativa é a de que, por um lado, as ações referentes às florestas brasileiras sejam prejudicadas pelas interferências oriundas do agronegócio brasileiro, agora na chefia do MAPA e, por outro lado, que às medidas referentes às mudanças climáticas não seja dada a importância necessária. Neste sentido, não há qualquer menção na medida provisória acerca do combate ao desmatamento no país, atividade que vem causando sérias consequências ao meio ambiente e que poderá acarretar em graves impactos para as atividades econômicas (especialmente a agropecuária) e a vida como um todo no Brasil (mais informações sobre os impactos das mudanças climática).

A transferência da Agência Nacional de Águas e do Conselho Nacional de Recursos Hídricos do MMA para o Ministério de Desenvolvimento Regional é mais um exemplo do esvaziamento do referido ministério. Ainda não se sabe os impactos diretos desta mudança nas políticas de recursos hídricos no país.

É especialmente preocupante o destino das políticas de participação social e transparência em matéria ambiental, principalmente no que diz respeito aos direitos das comunidades e povos tradicionais, da transparência acerca de instrumentos de políticas ambientais (como o CAR, o Licenciamento Ambiental, entre outros) e da transparência na gestão dos recursos hídricos. Nos últimos anos estas pautas já vêm sofrendo com as reduções de orçamento do Ministério do Meio Ambiente, e seus futuros ainda permanecem incertos nesta nova configuração do governo.  

Demarcação de terras

A competência de demarcação de terras indígenas e quilombolas (anteriormente da FUNAI e do INCRA, respectivamente) foram transferidas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, algo que é também alarmante na perspectiva da ARTIGO 19. Grande parte dos conflitos fundiários em terras de povos e comunidades tradicionais e originários estão relacionados à intrusões do agronegócio e de outras atividades produtivas (como a mineração, por exemplo) nos territórios destes povos e a violência contra ativistas  e lideranças comunitárias que atuam na defesa de suas terras e do meio ambiente tem se intensificado nos últimos anos, bem como as violações à liberdade de expressão e informação destes defensores de direitos humanos, que têm sido criminalizados e ameaçados por reivindicarem seus direitos e por questionarem a falta de voz das comunidades em decisões relacionadas aos seus territórios.

Assim, atribuir a competência de demarcação essa competência a um órgão chefiado por uma representante destes grupos econômicos pode ser entendido como um risco à integridade dessas comunidades e pode diminuir ainda mais a participação das comunidades na gestão e preservação de seus territórios.

 

Manutenção da CGU é positiva

A manutenção da estrutura da Controladoria Geral da União é vista como um sinal positivo. Espera-se que o orçamento destinado a pasta, assim como os quadros alocados para suas diretorias e secretarias, correspondam às necessidades de atuação deste importante órgão.

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