Dados governamentais e a luta contra a violência à mulher no Brasil

A violência contra a mulher é um fenômeno trágico que afeta a vida de incontáveis brasileiras todos dos dias. De acordo com o estudo “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, produzido por DataFolha, Instituto Avon e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dois terços da população brasileira já testemunharam  um ato de violência contra mulher. O mesmo estudo revela ainda outro número preocupante: todos os dias, 12 mil mulheres sofrem violência no Brasil. Frequentemente, essa violência tem repercussões fatais: o estudo Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil demonstrou que a taxa de homicídios de mulheres no país entre os anos de 2006 e 2013 aumentou em 12,5%, chegando a 4,8 vítimas de homicídio a cada 100 mil mulheres.

Taxas nacionais de violência contra as mulheres, como as mencionadas acima, revelam uma realidade alarmante. No entanto, esses dados ainda são insuficientes. Para combater a violência contra a mulher é preciso traçar um diagnóstico aprofundado nas diferentes unidades da federação, o que significa que informações e dados que detalham a situação em cada Estado brasileiro devem estar disponíveis. Só assim é possível compreender a total complexidade do fenômeno nos diversos contextos em que ele se apresenta.

A criação de um panorama completo e detalhado da violência contra as mulheres no Brasil é uma tarefa desafiadora. Devido a questões como falhas na coleta de dados, barreiras tecnológicas e falta de conscientização de servidores, as informações disponíveis são, na sua maioria, incompletas. Há também uma enorme dificuldade em reunir e cruzar as informações dos diferentes setores do governo, como nas áreas da saúde, segurança pública e Justiça. A obtenção de dados de qualidade, provenientes de fontes oficiais, que cobrem todo o território nacional e que consideram as especificidades de todas as brasileiras, é quase impossível.

Em um esforço para mapear as principais fontes de informação governamental e da sociedade civil sobre a violência contra a mulher, a ARTIGO 19 publicou em 2015 um relatório intitulado “Violência Contra a Mulher no Brasil – Acesso à Informação e Políticas Públicas”. O estudo apontou para uma indisponibilidade geral dos dados oficiais públicos sobre o assunto, demonstrando ainda que, embora exista uma vasta gama de pesquisas independentes e acadêmicas contendo dados sobre violência contra as mulheres, apenas uma pequena parte dessa informação vem de fontes governamentais. Tal constatação indica a inexistência de dados oficiais mais amplos e consolidados sobre esse tipo de violência no país.

Essa coleção diversa de pesquisas acadêmicas, produzida a partir década de 1980, foi útil para visibilizar a questão, permitindo descrever as causas e medir a violência que estava começando a chegar às instituições públicas. Ademais, contribuiu e segue contribuindo com um amplo leque de informações e análises para descobrir a complexidade da violência contra as mulheres – ainda que, em razão de seus resultados apresentados de forma parcial e fragmentada, não permite a composição de indicadores, que seriam fundamentais para a elaboração, monitoramento e avaliação de políticas públicas, especialmente nas esferas locais.

Durante uma entrevista para a ARTIGO 19, Jurema Werneck, ex-coordenadora do Criola e atual diretora-executiva da Anistia Internacional, destacou como é urgente que o governo brasileiro comece a produzir informações de qualidade. “Todo tipo de informação é necessária. Mas precisa ser informação desagregada, que permita visibilizar as diferentes situações e vulnerabilidades dos diferentes grupos populacionais. É raro ver informação oficial qualificada que explicite, por exemplo, a situação das mulheres negras, e menos ainda em sua diversidade: geracional, de orientação sexual, de identidade de gênero, de escolaridade, de local de moradia etc”.

Esse é um cenário preocupante. Indiscutivelmente, a violência contra as mulheres é uma questão que exige ação incisiva do Estado brasileiro, por meio da promoção de políticas públicas destinadas a garantir a segurança das mulheres. Mas a elaboração e implementação dessas políticas só é possível quando informação pública de qualidade é produzida e disponibilizada. Para conceber políticas públicas adequadas e eficazes para enfrentar com êxito a  violência contra a mulher, os governos devem ser capazes de medir e dimensionar a questão.

A Lei Maria da Penha prevê a criação de um sistema nacional de dados e informações relativo às mulheres. Esse mecanismo seria uma ferramenta de prevenção para ajudar a combater a violência contra as mulheres: ele incluiria a publicação de estudos e pesquisas, estatísticas oficiais e outras informações relevantes, com perspectiva de gênero e raça, referentes às causas, conseqüências e freqüência da violência doméstica contra as mulheres. Os dados seriam organizados nacionalmente e os resultados seriam avaliados periodicamente. No entanto, a criação do sistema nacional de dados e informações ainda não foi concluída.

Vindo ao encontro dessa necessidade, foi lançado em 2016 o Cadastro Nacional de Casos de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o qual tem como principal função o registro de todos os casos de violência doméstica contra a mulher em que a lei chegou a ser aplicada. A alimentação desse banco de dados é de responsabilidade dos Ministérios Públicos (MP) de cada Estado.

A ARTIGO 19, por meio do Sistema de Informação ao Cidadão do CNMP, realizou um pedido de informação quanto a quais dessas unidades do MP já começaram a realizar esse trabalho. O pedido foi, prontamente respondido pela ENASP (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública), que divulgou seu site com diversos gráficos elaborados a partir dos dados coletados entre a a entrada da lei em 2016 até o primeiro semestre de 2017 em relação às informações socioeconômicas de vítimas e agressores, bem como sobre o contexto (horário e local) de maior frequência das agressões.

Além disso, a ENASP informou que, dentre todas as unidades da Federação, Alagoas, Amazonas, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo ainda não informaram seus dados ao Governo Federal.

Percebe-se, dessa forma, que as iniciativas do governo brasileiro para combater a  violência contra a mulher aumentaram nos últimos anos, mas a falta de informações oficiais sobre o tema no Brasil permanece sendo uma questão a ser tratada com urgência. No Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, celebrado neste 10 de outubro, a ARTIGO 19 chama a atenção para a questão e ressalta que o fortalecimento da captação, produção e divulgação de dados públicos sobre o tema é um passo crucial na luta contra a violência contra a mulher no país.

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