A produção, sistematização e acessibilidade dos dados públicos relativos ao sistema carcerário brasileiro ainda são bastante nebulosas, o que prejudica o direito à informação. A conclusão é da advogada Viviane Balbuglio a partir de uma pesquisa que buscou levantar informações produzidas por órgãos federais e secretarias estaduais de segurança pública sobre pessoas indígenas em regime de cárcere.
Integrante do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Viviane diz ter encontrado inconsistências sérias que impossibilitam um diagnóstico mais preciso sobre a situação das pessoas presas no país. “É impossível ter noções exatas da proporção do encarceramento no Brasil, em especial do encarceramento de mulheres, que ainda ficam invisibilizadas nesse sentido”, afirma.
No caso específico dos indígenas, praticamente não há o registro de dados desagregados em aspectos relevantes, como os que se referem ao povo, aldeia ou língua, limitando o registro da identidade indígena apenas à declaração da cor no momento da prisão.
Atualmente, Viviane trabalha em um projeto junto a mulheres migrantes egressas do sistema carcerário, vinculado ao Projeto Estrangeiras, do ITTC. Ela falou com a ARTIGO 19 a respeito de sua pesquisa sobre as pessoas indígenas no sistema carcerário brasileiro.
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Nas diversas atividades realizadas pelo ITTC, vocês percebem que há uma escassez de dados e informações sobre os temas com os quais a organização trabalha, em especial, o encarceramento?
A questão dos dados em se tratando do sistema prisional e do sistema de Justiça como um todo é bastante nebulosa. Em se tratando, por exemplo, das mulheres, até 2014 o Departamento Penitenciário Nacional nunca havia realizado um recorte específico de gênero nos dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias).
Há ainda uma imprecisão dos dados e também dificuldade em obtê-los. Um exemplo é que no último Infopen não constaram informações sobre o aprisionamento de pessoas no Estado de São Paulo pelo fato de a Secretaria de Administração Penitenciária não ter fornecido essas informações. Além disso, há também divergências entre dados fornecidos pelos órgãos oficiais, como o próprio Ministério da Justiça e o Conselho Nacional de Justiça. Então é impossível termos noções exatas da proporção do encarceramento no Brasil, em especial do encarceramento de mulheres, que ainda ficam invisibilizadas nesse sentido.
Conte um pouco a respeito dos pedidos sobre encarceramento de homens e mulheres indígenas no Brasil.
Os pedidos foram realizados em uma parceria entre o ITTC e o Instituto das Irmãs de Santa Cruz, e seu principal propósito era comparar as informações recebidas via Lei de Acesso à Informação com os dados do Infopen de 2014, especificamente no recorte entre homens e mulheres indígenas.
Os pedidos foram realizados a quase todas as secretarias de segurança pública dos Estados do Brasil, e, a depender da organização própria de cada Estado, os pedidos foram reencaminhados para outros órgãos, como para secretarias de administração penitenciária e de direitos humanos. As perguntas feitas buscavam saber o número de pessoas indígenas presas, bem como o gênero, número do processo criminal de conhecimento e de execução, o povo ao qual pertencia e a língua materna.
Outro objetivo dos pedidos era observar como as autoridades e órgãos policiais e penitenciários têm (ou não) registrado o aprisionamento de pessoas indígenas no Brasil e, caso existisse esse registro, se estariam sendo respeitados os critérios de autodeclaração dos parâmetros internacionais estabelecidos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, já que garantir a autodeclaração e a identificação como indígena desde o momento da prisão em flagrante é também assegurar direitos específicos das pessoas indígenas.
Uma primeira afirmação que podemos fazer a partir do levantamento dessas informações é que não há uma padronização ou metodologia clara entre os órgãos responsáveis nos Estados em registrar se as pessoas são indígenas, tampouco existe uma noção geral acerca de qual tipo de informação deve ser classificada como sigilosa e não considerada pública. Um exemplo disso é que o Estado do Pernambuco apresentou como justificativa para não responder nosso pedido a necessidade de proteção de dados pessoais e o sigilo de determinadas informações. Essa posição se manteve mesmo após interpomos um recurso. Por outro lado, Santa Catarina não apenas respondeu os questionamentos-base dos pedidos, como também enviou fichas criminais completas das pessoas que, em tese, seriam indígenas e estavam em situação de prisão no Estado.
Observamos ainda que quando comparamos os dados de pessoas indígenas em situação de prisão fornecidos pelo Infopen de 2014 e os dados individualmente fornecidos pelos Estados, apesar das diferenças temporais entre a coleta destes dados, é visível as diferenças entre a metodologia de sistematização de informação. Poucos Estados trouxeram informações referentes a povo, aldeia ou língua das pessoas indígenas, limitando a constatação da identidade indígena à declaração sobre a cor da pele fornecida pelas autoridades quando do momento da prisão. Uma exceção foi o Mato Grosso do Sul, que enviou relatório detalhado constando nomes, informações processuais, a unidade prisional em que essas pessoas se encontram e até mesmo o povo a que pertencem. Vale lembrar que este é um dos Estados que mais aprisionam pessoas indígenas no Brasil, especialmente em razão do contexto social e dos conflitos relacionados à terra, que têm gerado uma crescente criminalização dos povos indígenas que resistem na região.
De quais maneiras a falta de acesso à informação sobre mulheres indígenas encarceradas afeta a garantia dos direitos dessas mulheres?
Uma primeira questão a ser pautada quanto às mulheres indígenas em situação de prisão é justamente que a falta de dados ocasiona uma invisibilidade sistêmica dessas mulheres na Justiça criminal, de forma que não se conhecem e também não se garantem seus direitos específicos. Da mesma maneira, não se sabe quantas mulheres indígenas estão em conflito com a lei, nem mesmo as acusações que recaem sobre elas.
Quanto aos direitos específicos, cabe ressaltar que o principal entre eles diz respeito à prioridade em absoluto pela aplicação de medidas alternativas ao encarceramento, conforme afirmam as Regras de Bangkok, aprovadas pela ONU em 2010, inclusive com ativa participação do Brasil. Trata-se de uma lista de regras que dispõem sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.
As regras 54 e 55 tratam especificamente da proteção das mulheres indígenas e estipulam a obrigação do Estado em reconhecer que as mulheres indígenas podem sofrer discriminações e dificuldades em razão de sua origem, e, portanto, devem ser identificadas como tal e ter suas necessidades específicas supridas. Além disso, determina também que políticas públicas na área devem sempre ser construídas com a participação das próprias mulheres e de suas comunidades, observando ainda a necessidade de se considerar os processos históricos, a ruptura de vínculos que a prisão pode trazer e a afetação direta gerada na vida dessas mulheres e de suas comunidades.