Para membros do mundo jurídico, desacato representa ameaça à liberdade de expressão

Na última quinta-feira (18), a sede da Procuradoria Regional da República 3ª Região, em São Paulo, serviu de espaço para o debate “Desacato     – por que descriminalizar”. O evento, organizado pela ARTIGO 19 e pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), reuniu advogados, juristas e demais membros da comunidade jurídica.

Na pauta do debate, a necessidade da descriminalização do “desacato”, um instrumento jurídico que implica graves violações ao direito à liberdade de expressão no país. Sua tipificação, que consiste na conduta de “desacatar”, ou seja, ofender de alguma forma funcionários públicos, representa uma proteção excessiva à categoria, contribuindo assim para inibir críticas direcionadas ao Estado.

Primeiro debatedor a falar, Marlon Wichert, da Procuradoria Regional da República, lembrou que o desacato é regularmente empregado pelas forças de segurança na relação com o cidadão. “Percebemos que o desacato é usado como uma espécie de coringa ao lado da ‘resistência’ e ‘desobediência’ – todos crimes relacionados à administração pública – para a repressão judicializada do exercício da liberdade de manifestação das pessoas”, disse.

O procurador citou uma segunda forma em que o desacato é usado de forma indesejável. “O desacato também surge em casos em há uma reclamação um pouco mais acalorada de um particular a um servidor público, podendo ser visto até como um ato criminoso. Todo mundo conhece o cartaz bem grande que fala sobre as penas para o crime de desacato que estampam as paredes de repartições públicas no Brasil”, complementou.

Já Camila Marques, advogada da ARTIGO 19, apontou que o desacato é usado majoritariamente contra a parcela vulnerável da população. “Quem é normalmente imputado com o crime de desacato é a população pobre e negra, pessoas que estão em áreas de violência generalizada. O desacato tem um recorte de classe social claro”, criticou.

Ela também afirmou haver uma tendência mundial da descriminalização do desacato, amparada nos principais padrões internacionais do setor. “Argentina, Bolívia e Guatemala são países que vêm revogando esse tipo penal do seu ordenamento jurídico. E todos eles vêm falando da importância à adequação à Convenção Americana de Direitos Humanos. O Brasil deveria caminhar na mesma direção.”

Terceira debatedora a falar no evento, Deborah Duprat, da PFDC, destacou a incompatibilidade do desacato com a pluralidade de ideias. “Numa sociedade plural, que é uma sociedade do desacordo, as pessoas são convocadas a falar. Assim, o desacato não cabe na Constituição de 1988 porque de alguma forma ele coloca um receio de fala.”

Para a procuradora, a remanescência desse crime até os dias de hoje é herança do regime ditatorial brasileiro. “Não consigo imaginar o desacato a não ser por outra herança, que vem de um período de supressão de liberdades, dessa super valorização do direito penal para sancionar todas as condutas. Um dos nossos graves problemas é que não tivemos no Brasil uma Justiça de transição sobre as violações da Ditadura, de forma que temos ainda várias coisas a serem resolvidas”, opinou.

Por sua vez, Cristiano Morona, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), disse acreditar que o desacato se enquadra em um contexto que classificou como “hiperpunitivismo”. “No lugar de universalizar o acesso a direitos, estamos universalizando o autoritarismo. Entendo que a discussão sobre a descriminalização do desacato se insere numa política maior de descriminalização. O primeiro desafio é transformar a mentalidade, da sociedade em geral e dos operadores de direito”, ponderou.

Para o advogado, o crime de desacato acaba mascarando uma realidade incômoda, que é o fato de que quem exerce o poder tende a abusar dele “É por isso que precisamos de mecanismos de controle social. De forma geral, as autoridades têm dificuldade em lidar com a crítica. Quando falamos de desacato, estamos falando da dificuldade de se estabelecer um diálogo franco e honesto que permita o exercício da crítica”.

Por fim, Carlos Weiss, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, também pontuou a necessidade de extinguir o desacato do Código Penal assim como outras tipificações de mesma natureza. “É desejável a extirpação do desacato e de outros crimes que tenham como tendência limitar indevidamente a manifestação do pensamento. O que acontece hoje é que as pessoas são enquadradas de maneira absolutamente autoritária nesse artigo”

O defensor público ainda expressou que o desacato representa uma ameaça aos valores democráticos. “Precisamos perceber a profundidade dos relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos quando ela diz que o desacato atenta não só contra a manifestação da liberdade de pensamento, mas atenta contra a própria democracia, já que o primeiro é um pilar fundamental do último”, sentenciou.

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