Análise: padrões internacionais devem nortear julgamento de caso de violência de gênero

A ARTIGO 19 solicita à Justiça do Paraguai que considere as normas internacionais de direitos humanos, sobretudo as relativas ao direito à liberdade de expressão e aos direitos das mulheres, no julgamento do caso envolvendo a organização paraguaia TEDIC, acusada de crimes contra honra pela publicação de um artigo que mencionava um episódio de violência de gênero na internet.

O artigo, publicado no dia 14 de fevereiro deste ano, trazia imagens de uma conversa no Facebook Messenger na qual um grupo de homens discute a possibilidade de abusar sexualmente de uma jornalista para “corrigir” sua orientação sexual. As imagens haviam sido publicadas no Twitter quatro dias antes pela própria jornalista alvo dos ataques, que acabou tendo acesso à conversa. Já a TEDIC, uma entidade que atua na defesa dos direitos civis na internet, publicou sobre o caso para discutir a questão da violência de gênero contra mulheres comunicadoras.

No dia 24 de fevereiro, uma das pessoas que faziam parte da conversa no Facebook entrou com uma ação judicial contra a TEDIC e a jornalista, alegando que as publicações prejudicaram sua honra, reputação e privacidade.

A cargo do Juizado de Infância e Adolescência do Paraguai, o julgamento do caso tem como desafio buscar o equilíbrio entre o direito à privacidade e a proteção da reputação, o direito à liberdade de expressão, os direitos das mulheres e o interesse público.

Para a ARTIGO 19, uma decisão a favor do autor da ação judicial representaria não só uma violação ao direito à liberdade de expressão da jornalista e da TEDIC como também aos direitos das mulheres em geral. Poderia também dissuadir as pessoas a relatarem episódios de violência de gênero na internet, além de criar um precedente perigoso para a defesa dos direitos humanos e para o exercício da atividade jornalística e da liberdade de expressão no Paraguai.

Normas internacionais aplicáveis

O direito à liberdade de expressão – que também abrange os meios de expressão eletrônicos, como a internet –  é um direito humano fundamental reconhecido por uma série de tratados internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, entre vários outros.

De acordo com esta vasta gama de documentos que conformam o direito internacional, a restrição ao exercício da liberdade de expressão só pode ocorrer caso passe no chamado “teste de três partes”. Segundo esse teste, a restrição, para ser legal, deve:

–  ser prevista em lei

– se basear em um dos motivos listados no artigo 19, parágrafo 3, do PIDCP, que são: a) buscar assegurar o respeito aos direitos e à reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral pública

– ser necessária e proporcional, na qual deve ficar comprovada a necessidade social pela restrição e a conexão direta entre o que foi expresso e o direito a ser protegido, e aplicada a medida menos restritiva possível que alcance o objetivo proposto

Ainda segundo os principais padrões internacionais, o mesmo teste também deve ser observado para os casos em que o direito à privacidade seja alvo de uma possível restrição legal.

Em seu “The Global Principles on Freedom of Expression and Privacy” (“Os Princípios Globais da Liberdade de Expressão e Privacidade”), que em breve terá uma versão em português, a ARTIGO 19 fornece um quadro abrangente para o equilíbrio desses dois direitos. “Os Princípios” também recomendam explicitamente que, ao tentar conciliar o direito à liberdade de expressão e o direito à privacidade, os tribunais de Justiça devem levar em consideração todas as circunstâncias do caso examinado, incluindo o quanto que o conteúdo expresso ou publicado pode contribuir para o debate de temas de interesse público.

Já o tópico da proteção da reputação é objeto de discussão em “Defining Defamation: Principles on Freedom of Expression and Protection of Reputation” (“Definindo Difamação: Princípios da Liberdade de Expressão e Proteção da Reputação”),  publicação da ARTIGO 19 reeditada recentemente e que descreve várias linhas de defesa que podem ser usadas por pessoas processadas por difamação. O trabalho recebeu significativo reconhecimento internacional, inclusive pelas Relatorias Especiais para a Liberdade de Expressão da ONU e OEA.

No que tange à proteção dos direitos das mulheres, existe uma série de normas e padrões internacionais que abrangem a questão. Uma delas é a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, que, embora não mencione explicitamente a “violência contra a mulher” em seu texto oficial, tratou da questão em duas Recomendações Gerais (12 e 19) aprovadas por seu comitê, que determinam que os Estados devem agir para eliminar a violência contra a mulher.

Outro documento que discorre sobre o tema é a “Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres”, adotado pela Assembleia Geral da ONU em 1993, que define a violência contra as mulheres como “todo ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em dano, sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária da liberdade, quer ocorra na vida pública ou na vida privada”.

Já a Plataforma de Ação de Pequim, de 1995, também identifica medidas específicas a serem tomadas pelos Estado de forma a prevenir e responder à violência praticada contra “mulheres e meninas”.

A violência contra a mulher ainda é objeto de discussão na Assembleia Geral da ONU, que a cada dois anos emite uma resolução sobre o tema.

Questões a serem consideradas no julgamento

A ARTIGO 19 considera que a Justiça paraguaia deve considerar todos os tratados e convenções citados acima no presente caso, em especial:

– A isenção de responsabilidade em casos de difamação: De acordo com a publicação “Defamation: Principles on Freedom of Expression and Protection of Reputation”, da ARTIGO 19,  certos tipos de declarações devem ser isentas de responsabilidade, a menos que se possa demonstrar que foram proferidas baseadas na má-fé. Além disso, também deve-se considerar se as declarações foram feitas no cumprimento de um dever legal, moral ou social. A publicação da ARTIGO 19 ainda reconhece a necessidade de uma maior proteção das declarações sobre questões de interesse público no contexto específico das leis de difamação.No episódio envolvendo a TEDIC, o artigo publicado visou discutir a questão da violência de gênero na internet e as ameaças de violência contra a jornalista. Como fica claro, trata-se de assuntos de grande interesse público, que se inserem ainda no debate sobre como a proteção contra a violência de gênero deve ser aplicada na internet. Independentemente dos pontos de vista sobre o conteúdo alvo de contestação judicial, a questão-chave é permitir que essa discussão ocorra no debate público.

– Interesse público e privacidade: À luz do direito internacional, as declarações sobre questões de interesse público merecem maior proteção devido ao papel fundamental que desempenham na salvaguarda da democracia e do interesse geral da sociedade. Embora a proteção seja concedida a quem faz as declarações, a medida é justificável porque é o público quem tem o direito de receber essas informações, fato que deve ser considerado pela Justiça paraguaia. Apesar do artigo da TEDIC e a publicação da jornalista ter incluído material que fora discutido em privado, ambos definitivamente contribuíram para o interesse público, que, no caso, é a discussão sobre a violência de gênero na internet.A ARTIGO 19 lembra que esse tipo de violência tem sido objeto de crescente preocupação na sociedade, até mesmo por parte dos órgãos internacionais de direitos humanos. Inclusive, no último dia 8 de março, especialistas da ONU em liberdade de expressão e violência contra a mulher emitiram declaração pública na qual apelam aos governos, empresas e organizações da sociedade civil a combater a violência de gênero na internet e proteger a liberdade de expressão. Dessa forma, fica claro que as publicações da TEDIC e da jornalista dizem respeito a uma questão de interesse público, e, por consequência, são abarcados pelos princípios acima enunciados.

– Requisito de dano grave: Segundo  as normas internacionais de liberdade de expressão, os autores do processo judicial devem demonstrar um dano “significativo” ou “grave” à sua reputação para que uma acusação de difamação possa prosseguir ou mesmo obter êxito. Assim, a Justiça paraguaia deve atribuir aos autores do processo o ônus de provar que o dano grave foi causado pelas publicações que, como já dito, possuem relevante interesse público.

Conclusão

A questão central no presente caso é o equilíbrio entre o direito à liberdade de expressão da TEDIC e da jornalista com a proteção da reputação e o direito à privacidade em assuntos de relevante interesse público.

Os padrões internacionais de direitos humanos mostram que tribunais e outros órgãos de autoridade concedem um elevado grau de proteção a esse tipo de publicações, dado o papel central que desempenham no debate público e na proteção dos direitos das mulheres. Isso é ainda mais verdadeiro quando os autores do conteúdo publicado são, como neste caso, pessoas cujo trabalho inclui a divulgação de informações de interesse público.

Uma decisão a favor do autor do processo judicial representaria um grave revés para a liberdade de expressão e para os direitos das mulheres no Paraguai. Enviaria um sinal a todas as paraguaias que desejem denunciar casos de violência de gênero na internet que, no caso de realizarem a denúncia, estariam imediatamente sob risco de sanções legais.

Por outro lado, uma decisão a favor da TEDIC e da jornalista enviaria um sinal claro, tanto dentro do Paraguai como em todo o mundo, de que o compromisso do país com os direitos das mulheres e com a liberdade de expressão é sólido e será rigorosamente mantido.

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