Está em vias de entrar na pauta do Supremo Tribunal de Justiça (STF) o caso do jornalista Cristian Goés, envolvido em um dos episódios mais emblemáticos de violação à liberdade de expressão no Brasil.
Góes é autor da crônica “Eu, o coronel em mim”, publicada em um blog em maio de 2012, quando residia em Aracaju, no Sergipe. O texto é uma espécie de confissão de um homem da época do coronelismo brasileiro e que ainda hoje tem poder, mas não cita nomes de pessoas, cargos, lugares nem datas.
No entanto, a existência de um “coronel” e de um “jagunço das leis” na crônica foi o suficiente para que o desembargador Edson Ulisses, então vice-presidente do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJ-SE), processasse Góes por injúria, acusando-o de haver ofendido o próprio magistrado e também o governador sergipano Marcelo Deda (PT), morto em 2013, mas que governava o estado à época.
Após julgamento, o jornalista foi condenado na esfera criminal a sete meses e 16 dias de prisão (pena convertida em serviços comunitários) e também na esfera civil, que resultou no pagamento de uma indenização no valor de 30 mil reais ao desembargador. Na sentença criminal, o TJ-SE argumentou que não é necessário dizer nomes nem usar qualquer identificação, basta “meia palavra”.
A defesa de Góes pede no STF a revogação do pagamento da indenização.
Conselho Nacional de Justiça
Além do Supremo, o caso também está no Conselho Nacional de Justiça, órgão no qual a defesa do jornalista questiona o respeito ao princípio da impessoalidade durante o julgamento de Góes. Isso porque, após o afastamento da juíza Brígida Declerk, que deveria julgar o caso, o juiz a substitui-la deveria ser Cláudio Bahia. No entanto, sem nenhum motivo alegado, o presidente TJ-SE escalou o Luiz Eduardo Araújo Portela para continuar os trabalhos.
Em três dias, Portela condenou Góes à prisão, sendo que entre todos os processos prontos para serem apreciados pelo magistrado, o único que recebeu sentença foi precisamente o de interesse do desembargador Edson Ulisses, à época vice-presidente do TJ-SE.
Para a ARTIGO 19, Góes jamais deveria ter a sua liberdade de expressão restringida. A defesa da reputação daqueles que se sentem ofendidos, por envolverem interesses protegidos constitucionalmente e que colidem com a liberdade de expressão, devem se basear em parâmetros internacionais que busquem situações de equilíbrio e evitem restringir direitos de forma desnecessária.
Nesse sentido, uma declaração, para ser considerada passível de responsabilização, deve ser, além de falsa, baseada em fatos e dotada de real intenção de causar dano à reputação de alguém. No caso de Góes, não houve referência direta a qualquer pessoa, mas um texto de caráter ficcional, que expressou uma opinião com a finalidade de discutir um assunto de interesse público.
Descriminalização dos crimes contra a honra
Ainda que a apreciação do STF do caso vá acontecer exclusivamente em função da condenação na esfera civil, há um contexto maior de fundo. Trata-se da luta pela descriminalização dos crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação) e do desacato, conforme determinam os padrões da legislação internacional.
A punição penal a esses tipos de crime – isto é, a possibilidade de prisão do réu em caso de condenação – é amplamente desproporcional, uma vez que tem um efeito “paralisante” sobre a liberdade de expressão, ao inibir críticas a figuras públicas e poderosas.
Foi justamente à luz dessa tese que, em outubro de 2013, a ARTIGO 19 acompanhou Cristian Góes durante audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos das Organizações dos Estados Americanos (OEA), realizada em Washington (EUA). Na oportunidade, o jornalista prestou depoimento para testemunhar sobre o flagrante caso de violação à liberdade de expressão.
O jornalista também foi mote de um minidocumentário produzido pela ARTIGO 19 chamado “Eu, o coronel em mim”. Além do caso de Góes, o filme destaca a história de outras pessoas que sofreram processo de difamação por conta da manifestação de opinião ou de matéria jornalística.