A falta ou a limitação de informações a respeito da violência contra as mulheres podem levar a políticas públicas inadequadas ou deficientes na área, restringir seriamente pesquisas e estudos acadêmicos, bem como comprometer o trabalho das organizações de direitos das mulheres.
A ARTIGO 19 procura aumentar a eficácia das políticas e leis aprovadas no Brasil de combate à violência exercida contra as mulheres, melhorando o acesso a informações relevantes que irão permitir um melhor acompanhamento e participação de grupos de defesa dos direitos das mulheres no planejamento e avaliação das iniciativas e programas desenvolvidos pelo Estado.
O brasil vem obtendo visibilidade no cenário internacional, especialmente pela sua relevância como potência econômica emergente. Ao mesmo tempo, a tradicional desigualdade social, discriminação e violações aos direitos humanos persiste como uma realidade do dia-a-dia do país. Neste contexto, a luta por diretos e justiça social enfrenta barreiras impostas pelo elitismo e autoritarismo que ainda reinam no contexto político brasileiro. Este elitismo e autoritarismo são reforçados pela histórica falta de transparência no Brasil em relação a assuntos de cunho público, a corrupção generalizada, assim como uma administração pública ineficiente. Estado e sociedade são mantidos separados, distantes, devido a uma falta de abertura e prestação de contas, por um lado, somados a uma educação deficiente e a falta de engajamento político do outro. Isto é especialmente desafiador para alguns grupos que também estão sujeitos a discriminação e violência, tais como as mulheres.
O inverso também se aplica. De acordo com a ONU Mulheres “O empoderamento e autonomia das mulheres e a melhoria de sua condição social, econômica e política é fundamental para a conquista de um governo transparente e responsável, assim como uma administração e o desenvolvimento sustentável em todas as áreas da vida”.
Avanços têm sido vistos nas últimas décadas e precisam ser reforçados e conservados. Melhorar o acesso à informação e a liberdade de expressão é um dos meios mais eficazes para fortalecer a governabilidade democrática. A liberdade de informação incentiva uma cultura democrática que vai muito além dos freios e contrapesos que constituem formalmente uma democracia em funcionamento. Um compromisso com o acesso à informação mostra às pessoas que o governo não vê as informações como algo de posse própria, mas como pertencente ao povo, criando uma arena na qual a política pode se desenrolar de forma irrestrita e construtiva. Mais e melhores informações facilitam a participação e a prestação de contas.
De acordo com informações publicadas pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Aplicada, estima-se que entre 2001 e 2011, 50 mil mulheres foram assassinadas no Brasil, principalmente como um resultado de violência doméstica. Este seria o equivalente a cerca de 5 mil mortes por ano.
Este é apenas um indicativo da extensão do problema da violência contra a mulher no país. Apesar de tais dados pontuais e baseados em estimavas, dados históricos a nível nacional sobre os casos de violência são informação inexistente, embora crucial.
Perante esta situação e a fim de cumprir as suas obrigações nos termos do CEDAW, bem como responder a Corte Interamericana de Direitos Humanos (que, em 2001, havia decidido contra o país no caso Maria da Penha), o Brasil aprovou em 2006, uma lei progressista sobre a violência doméstica, que fornece não só penas mais severas aos agressores mas também estabelece uma série de serviços, estruturas e práticas cujo objetivo é prevenir e reduzir a violência doméstica, em particular contra as mulheres. A lei – Lei sobre a Violência Doméstica (conhecida como Lei Maria da Penha – Lei 11340/2006) – é o resultado de um extenso processo de consultas e discussões, em que as organizações-chave de mulheres desempenharam um papel crucial. Dentre as diversas medidas que devem ser tomadas pelas autoridades, está a criação de um sistema unificado de informação que poderia fornecer dados de âmbito nacional sobre o número de casos. Isto seria essencial, uma vez que tal informação nos dias de hoje não é disponível. As estimativas existentes são baseadas em taxas de homicídios total de mulheres recolhidas pelas autoridades policiais, em casos levados ao Disque Denuncia (linha direta) criada pelo Governo Federal, ou em pesquisas de percepção. Tais dados não são especificamente projetados para produzir informações significativas que poderiam ajudar a avaliar o grau de aplicação e do impacto das medidas estabelecidas pela Lei Maria da Penha.
Além disso, os sistemas de informação estabelecidos para reportar acerca da implementação pelos órgãos públicos das muitas obrigações e compromissos estabelecidos pela Lei Maria da Penha – como a criação de abrigos, de delegacias especializadas, treinamento para profissionais da saúde pública, etc – são insuficientes ou podem ser significativamente melhorados.
Conforme destacado pela ONU Mulheres “a distribuição equitativa de poder e tomada de decisões em todos os níveis, é dependente de governos e outros agentes que realizam a análise estatística de gênero e integração da perspectiva de gênero no desenvolvimento de políticas e implementação de programas”.
De acordo com a pesquisa em desenvolvimento pela ARTIGO 19, existem atualmente no Brasil quatro principais fontes de informação sobre a violência contra a mulher:
– Pesquisas de percepção
– Estudos de vitimização
– Estudos setoriais baseados em registros públicos
– Estudos sobre o funcionamento da rede de serviços públicos posto em práticas pelo governo para prover atenção as vítimas ou vítimas potenciais de violência.
As pesquisas de percepção são realizadas por renomeados institutos de pesquisas brasileiros, como o IBOPE, IPEA, Dados do Senado, Instituto Avon, Data popular, entre outros. No total, foram identificados 15 edições de tais estudos. Estes estudos representam as percepções das pessoas a respeito da violência contra a mulher após entrevistas que se aplicam a partir de um questionário estruturado. Apesar de muito interessante e útil para indicar o quanto as pessoas sabem sobre as leis aplicáveis, como eles percebem o grau de violência na sociedade, suas causas e confiança nas instituições públicas, essas pesquisas são limitadas em seu escopo (há sempre o risco de ser considerado como mais ampla do que realmente são) e dificilmente permitem a comparação. Além disso, eles também estão limitados em seu número e não são aplicadas anualmente de forma consistente ou ao longo de períodos de tempo pré-determinados.
Estudos de vitimização são fontes essenciais de informação, pois permitem um diagnóstico mais aproximado da experiência de fato enfrentada pelas vítimas e, portanto, apontam soluções mais apropriadas para lidar com tais experiências. Eles são interessantes porque chamam a atenção para a diferença entre a violência real e a violência denunciada: a violência que efetivamente acontece e a violência que chega às instituições públicas. Estes tipos de estudos são normalmente mais caros e poucos foram realizados a nível nacional; a maioria deles se limita a estados ou capitais. Além disso, a maioria dos estudos existentes não são específicos sobre a violência contra as mulheres (cobrem a violência em geral e tem capítulos sobre a violência sexual e doméstica).
Estudos setoriais com base em registros públicos, particularmente aqueles pertencentes aos serviços policiais (boletim de ocorrência/ relatórios), Judiciário (processos criminais), e serviços de saúde são uma importante fonte de informação para a criação de perfis de vítimas e agressores, e para refletir o fluxo de informação(ou falta dele) entre os diferentes órgãos públicos. Os dados nacionais de diferentes setores, entretanto, além de serem limitados a setores específicos, são normalmente baseados em critérios diferentes para a coleta de informações e há muitas questões referentes ao cuidado com que as informações são coletadas “na ponta” por aqueles em contato direito com o público. Além disso, é importante mencionar que os estudos setoriais com base em registros públicos só fornecem informações sobre violência denunciada. Todos os casos que não chegam ao Estado, devido a vergonha, medo, ou falta de informação, não são considerados em qualquer análise com base neste tipo de fonte.
Finalmente, uma outra fonte de informação sobre a violência contra a mulher deriva dos dados coletados e disponibilizados através de estudos que são desenvolvidos para avaliar como a rede de serviços públicos ofertados pelo estado para prestar atendimento às vítimas ou potências vítimas de violência estão funcionando. Esses estudos nos permitem compreender o que são os serviços oferecidos às mulheres, onde estão e quantas pessoas são apoiadas, mas não fornecem informações sobre as condições reais de funcionamento e impacto dos serviços prestados.
Como podemos perceber a partir do exposto acima, todas as fontes de informações disponíveis atualmente são limitadas em certo ponto, e podem ser melhoradas. Além disso, também é preciso discutir como as informações estão sendo usadas e qual é a informações mais necessária para fornecer avanços reais nas políticas de combate à violência contra as mulheres.
A ARTIGO 19 tomou diferentes medidas nos últimos anos para tentar resolver esta falta de informação, uma vez que isto tem sido trazido como preocupação por organizações parceiras de direitos das mulheres. Nós apresentamos pedido de informação, organizamos consultas e reuniões com grupos de mulheres, e também realizamos ações de advocacia.
Com base em nossa experiência e as de nossos parceiros, podemos afirmar que as preocupações mais comuns em relação ao acesso à informação sobre a violência contra as mulheres são: os atrasos nas publicações de informações e dados online; a falta de resposta a pedidos de informação por parte das autoridades competentes; banco de dados que não “conversam entre si”, gerando dados que não podem ser comparados ou cruzados; inexistência de dados amplos e confiáveis em nível nacional sobre o número de casos de violência; a falta de capacidade e/ou dedicação na administração pública para coletar e fornecer adequadamente informações ao público; e a má avaliação dos tipos de informações que podem ser realmente úteis e eficazes para melhorar a resposta do estado à violência contra as mulheres.
Desde 2013 nós temos organizado reuniões para discutir os resultados da investigação realizada pela Comissão Parlamentar de Inquérito criada pelo Congresso para propor recomendações a fim de enfrentar o problema da violência contra as mulheres no Brasil. Uma das recomendações do relatório final é exatamente a organização de um sistema unificado de informação sobre a violência contra as mulheres. Clamamos às autoridades que atentem a essa recomendação.
Através de pesquisa, capacitação e sensibilização, pretendemos continuar nosso trabalho, não só focando na coleta de dados e divulgação destes, mas também levando a cabo uma abordagem mais ampla a longa prazo a fim de melhorar a informação para participação e accountability em relação às políticas e programas desenvolvidos pelo Estado para combater a violência contra as mulheres no Brasil.