Repressão policial em protestos exige responsabilização do Estado brasileiro

Créditos: Pedro Chavedar
Créditos: Pedro Chavedar

A violência da força policial empregada indiscriminadamente contra manifestantes que protestavam pacificamente contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em várias cidades brasileiras enseja uma resposta da sociedade civil e de organizações de direitos humanos para que sejam responsabilizados aqueles que cometeram os abusos em desrespeito aos direitos sociais, coletivos e individuais historicamente conquistados pela cidadania brasileira.

É inaceitável que o direito à liberdade de manifestação continue a ser tratado no Brasil como um caso de polícia, mesmo após 25 anos da Constituição Federal que estabeleceu o Estado Democrático de Direito.

O que se viu no último protesto a favor da redução das tarifas de ônibus em São Paulo, no dia 13 de junho, foi uma série de violações aos direitos humanos por parte da Polícia Militar contra cerca de 20 mil manifestantes que, em sua enorme maioria, participavam pacificamente do ato. As violações cometidas pela polícia tiveram início antes mesmo das pessoas chegarem ao local do ato, a começar pelas detenções ilegais ocorridas por motivos como: portar vinagre (utilizado para aliviar os efeitos do gás lacrimogêneo), carregar tinta ou sprays, possuir qualquer objeto cortante na mochila (como p.ex: estilete, tesoura, etc.) ou ter alguma perfil “suspeito”. Quando questionados pelos advogados no momento da detenção, os policiais afirmavam que esse era o procedimento para aqueles que carregassem qualquer substância ou objeto perigoso.

As detenções arbitrárias seguiram por toda a noite, chegando por volta de 235 detidos, que relatavam abusos e intimidações durante a detenção e ao longo do trajeto até a delegacia. A ausência de conduta tipificada no Código Penal brasileiro fez com que apenas 4, desses 235 detidos, permanecessem na delegacia por alguma alegação mais consistente.

Além das detenções ilegais, a polícia se utilizou de meios diversos para gerar caos e medo entre a multidão que até então caminhava pacificamente pelo centro da cidade. O uso do gás lacrimogêneo e de balas de borracha foi utilizado contra manifestantes e transeuntes que gritavam “sem violência”, muitos deles foram encurralados entre a tropa de choque e a cavalaria, sem ter como se proteger do gás e das balas. Dentre os feridos, estão manifestantes, moradores, pessoas que saíam de seus trabalhos e jornalistas que cobriam o evento – um deles corre risco de perder a visão devido a uma bala de borracha. A polícia atirou irresponsavelmente uma bomba de gás lacrimogêneo dentro de um carro de um senhor que estava parado no trânsito e outra dentro de um posto de gasolina, colocando em risco a vida das pessoas.

A população e a imprensa têm se utilizado das mídias sociais para divulgar as cenas e os relatos da violência policial, questionando também o posicionamento do Governo brasileiro com relação à repressão a esses protestos. Em um dos vídeos que estão circulando na rede, foi gravada a ação de caça da polícia contra manifestantes que tentavam fugir do efeito do gás, o que demonstra mais uma ilegalidade por parte daqueles que tem a função de proteger a integridade das pessoas durante essas manifestações, coibindo, com o máximo de precaução, apenas a violência que possa colocar em risco terceiros. Em outro vídeo, foi filmada a ação de depredação de uma base da polícia pelos próprios agentes policiais que estavam em uma viatura, evidenciando que a própria polícia cria provas falsas e incita à violência para deslegitimar o movimento, fazendo com que aqueles que não presenciaram o fato tenham dificuldades de entender o que aconteceu. Cumpre afirmar que mesmo alguns focos isolados de violência por parte de uma minoria de manifestantes não justificaria a repressão desproporcional por parte da polícia.

Créditos: Pedro Chavedar
Créditos: Pedro Chavedar

Pelo menos 4 helicópteros da Polícia Militar rodeavam a região e focavam os seus holofotes em grupos que eram perseguidos pela polícia até serem detidos ou espancados. Houve testemunhos de que a polícia utilizou cassetetes para bater em uma mulher que carregava uma criança no colo, e uma mulher negra foi à delegacia para denunciar que havia sido pisoteada pela polícia apenas por ser negra. A cavalaria se utilizou, além dos cavalos, as espadas que fazem parte do sue uniforme para intimidar aqueles que já não tinham para onde correr.

Do que foi exposto, chama a atenção a desproporcionalidade e brutalidade da ação policial. O número do efetivo policial, principalmente após a chegada da tropa de choque, era desproporcional ao número de manifestantes, que carregavam apenas, em sua maioria, cartazes, bandeiras e câmeras fotográficas e filmadoras, enquanto os policiais estavam munidos de armas de fogo, balas de borracha, bombas e outras armas de efeito “não-letal”.

Outra questão preocupante é o fato de diversos integrantes da tropa de choque e da polícia civil haver retirado a identificação que é presa à farda e que contém o nome e patente do policial. A Artigo 19 considera grave que agentes do Estado, que devem agir conforme a lei para garantir a segurança da população, não estejam identificados durante a prestação de seus serviços. Tal identificação é princípio fundamental dos deveres e funções da polícia.

Esses fatos evidenciam a inviabilidade da coexistência de uma democracia com instrumentos estatais advindos da ditadura militar. O Conselho de Direitos Humanos da ONU, desde 2012, recomendou ao Estado brasileiro a extinção da polícia militar por ser, entre outros motivos, uma instituição que é utilizada em diversos países apenas em situações de guerra e exceção junto às Forças Armadas.

A completa ausência de comprometimento do dever da polícia, sob a tutela do Estado, com relação às obrigações no sentido de, por um lado, garantir que as manifestações se desenvolvam de forma pacífica “protegendo os participantes de uma manifestação contra violência física por parte de pessoas que possam sustentar opiniões opostas” (CIDH, Relatório Anual 2007) e, por outro, de não interferir no exercício do direito de protesto. Segundo o Relatório sobre a Segurança Cidadã e Direitos Humanos da CIDH (2009), “Historicamente na região, a falta de um devido cumprimento de ambas as classes de obrigações tem derivado em fatos de violência generalizada nos quais, não somente se afeta seriamente o exercício do direito de reunião, mas também se vulneram os direitos à vida, à integridade física, à liberdade e à segurança pessoal”.

Cabe observar que o ambiente para o livre exercício da liberdade de expressão no Brasil não está comprometido apenas pela ausência de respeito aos direitos humanos por parte da polícia, especialmente a polícia militar. A Comissão Mista do Congresso Nacional se prepara para propor uma lei que definirá penalmente o crime de terrorismo. Dentre as discussões em pauta está o enquadramento dos movimentos sociais como um grupo terrorista, estratégia que já vem sendo utilizada em outros países como forma de criminalizar esses movimentos. Ainda, recente decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais instituiu nova versão de censura prévia, proibindo manifestações públicas durante os jogos das Copas das Confederações nos 853 municípios do estado.

Nesse sentido, a ARTIGO 19 considera emergencial a articulação da sociedade civil para a proteção da liberdade de expressão como forma de permitir a garantia de outros direitos humanos igualmente fundamentais. Para tanto, enviamos hoje carta à Relatoria  Especial da ONU e CIDH pela Liberdade de Expressão, como também a Relatoria Especial pela Liberdade de Assembleia Pacífica e Associação a fim de denunciar as referidas violações e outras que foram constatadas nesses últimos atos, cobrando a responsabilização do Estado brasileiro como um todo pelo descumprimento de obrigações que se comprometeu na Constituição pátria e em tratados e convenções internacionais no sentido de garantir o direito à livre manifestação e à liberdade de expressão.

 

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