Maria da Glória Costa Reis, defensora dos direitos humanos e professora aposentada que coordena a edição de um jornal escrito por detentos em Leopoldina, no interior de Minas Gerais, foi condenada a quatro meses de prisão por publicar um artigo criticando as condições da cadeia pública da cidade e a negligência de juízes e advogados em relação à situação dos presos.
“Sentenciar à prisão alguém que escreve sobre possíveis violações aos direitos humanos é profundamente trágico. As condições das prisões são questões de política pública e claro interesse público. Elas devem ser investigadas, relatadas, debatidas e, finalmente, transformadas e melhoradas. Elas não devem ser escondidas. A ação de difamação contra Maria da Glória Costa Reis e a decisão são vergonhosas”, afirmou Agnès Callamard, diretora executiva da ARTICLE 19.
O artigo foi publicado pelo jornal “Recomeço”, com circulação de 200 exemplares, escrito pelos detentos em Leopoldina e distribuído entre eles e em lugares como igrejas, o fórum da cidade e alguns edifícios públicos. Em agosto de 2005, Reis publicou um editorial afirmando que “não é aceitável a conivência de magistrados, fiscais da lei, advogados, enfim, operadores do direito com tamanha barbárie”, referindo-se às condições dos presos. Segundo o editorial, as prisões em Leopoldina não estavam seguindo os direitos fundamentais dos detentos, previstos pela
Constituição Federal brasileira.
Embora o artigo não tenha mencionado qualquer nome ou cargo específico, Reis respondeu a um inquérito policial por ter supostamente ofendido o juiz José Alfredo Jünger de Souza Vieira, que era então o titular das varas Criminal e de Execução Penal em Leopoldina, sendo portanto responsável por acompanhar o cumprimento das penas e monitorar as prisões. Em uma decisão publicada em janeiro de 2008, a juíza Tânia Maria Elias Chain, do Juizado Especial de Leopoldina, condenou Reis criminalmente por difamar o juiz Vieira. A decisão foi baseada na Lei de Imprensa (Lei 5.250/67). Como a professora é ré primária, a pena de prisão foi convertida em prestação em dinheiro.
A ARTICLE 19 pede às cortes de Minas Gerais que cumpram as obrigações internacionais do Brasil na área de liberdade de expressão e reformem a decisão. As melhores práticas internacionais relacionadas à difamação estabelecem que ninguém pode ser condenado por difamação a não ser que a parte acusadora prove, sem qualquer dúvida, que a afirmação em questão era falsa; que a pessoa que fez a afirmação sabia que ela era falsa ou demonstrou descuido e negligência a respeito da verdade; e que a afirmação foi feita com a intenção de causar danos à reputação da pessoa envolvida. O editorial publicado por Reis não fez qualquerreferência pessoal ao juiz, sendo portanto difícil compreender como o texto poderia ter explicitamente causado danos a sua reputação, especialmente levando-se em consideração a circulação limitada do jornal. Além disso, não houve tentativa de investigar as alegações feitas no editorial ou de provar se elas eram falsas.
Instituições internacionais como a ONU e a OEA já reconheceram a ameaça representada pelas leis de difamação criminal e recomendaram que elas sejam eliminadas. O Comitê de Direitos Humanos da ONU, por exemplo, expressou repetidamente preocupação quanto às leis criminais de difamação, e pediu aos Estados que garantam que a difamação não seja punida com prisão. A Corte Interamericana de Direitos Humanos também identificou uma transgressão do direito à liberdade de expressão em dois casos emblemáticos envolvendo a aplicação da difamação criminal a afirmações sobre questões de interesse público, descartando-a totalmente nesses casos.
“Acredito que o juiz queria me assustar por causa do jornal”, afirmou Maria da Glória Costa Reis à ARTICLE 19. “Chegamos ao ponto de ter um processo partindo do próprio Judiciário, que deveria defender e aplicar a justiça”, disse ela.
“O caso contra Maria da Glória Costa Reis demonstra os perigos que a figura da difamação traz à democracia. O uso excessivo e abusivo das leis de difamação e, particularmente, a existência da difamação criminal desestimulam o debate sobre instituições públicas, evitam a crítica e encorajam a autocensura”, afirmou Callamard.
A ARTICLE 19 condena veementemente a decisão da juíza Chain e pede às cortes de Minas Gerais que a modifiquem. A ARTICLE 19 considera inaceitável o alto número de processos criminais por difamação contra defensores de direitos humanos e jornalistas no Brasil, assim como sentenças desproporcionais concedidas por alguns juízes. Finalmente, a ARTICLE 19 pede ao governo brasileiro que reforme a Lei de Imprensa e descriminalize a difamação.