Diversas entidades da sociedade civil assinam manifesto lançado nesta segunda-feira (4) para chamar atenção para o caso de Roberta da Silva Pereira, condenada em julho de 2016 em primeira instância a três meses de detenção pela prática de “ato obsceno em lugar exposto ao público”.
O processo que resultou na condenação foi aberto sob a alegação de que Roberta teria exposto seus seios durante manifestação realizada pela Marcha das Vadias em junho de 2013, em Guarulhos (SP). A pena foi convertida em multa no valor de mil reais.
Após a condenação, Roberta teve seu recurso negado pelo Colégio Recursal de Guarulhos, e agora sua defesa acionará o Supremo Tribunal Federal alegando a violação de um direito constitucional, no caso, o da liberdade de expressão.
O manifesto lembra que o “ato obsceno é interpretado de acordo com os valores sociais e culturais do julgador”, o que permitiria interpretações tendenciosas que resultam na “criminalização de expressões minoritárias e já tradicionalmente marginalizadas na sociedade”.
O documento enfatiza ainda que o caso configura um “desrespeito aos direitos constitucionais à liberdade de expressão e reunião, na medida em que a nudez parcial constitui, neste caso, elemento essencial da mensagem que o protesto buscava transmitir”.
Outro ponto que criticado é o avanço do fundamentalismo religioso no sistema político e jurídico, que “ carrega em si a ideia de que a exposição do corpo feminino, quando não está no contexto de maternidade e de outras funções socialmente aceitas e impostas, é pecado e deve ser punido”.
Confira abaixo o texto na íntegra:
Manifesto contra censura judicial à nudez em protesto
A violência de gênero e o contexto sistemático de criminalização do direito ao protesto são elementos que se interligam no caso da ativista Roberta da Silva Pereira. Roberta participou de um ato da Marcha das Vadias de Guarulhos em junho de 2013, ocasião em que expôs os seios junto às outras manifestantes como forma de protesto e, em decorrência disso, foi detida, processada e condenada pelo crime de ato obsceno.
Tipo penal aberto e altamente elástico, conforme reconhece o próprio juiz do caso, na realidade o ato obsceno é interpretado de acordo com os valores sociais e culturais do julgador, o que abre espaço para análises enviesadas e que têm como resultado a criminalização de expressões minoritárias e já tradicionalmente marginalizadas na sociedade. É, evidentemente, o caso, quando se considera que o objetivo da marcha em questão era denunciar a cultura do estupro e manifestar apoio à legalização do aborto, dentre outros temas correlatos. A perversão do corpo da mulher e a estigmatização de sua presença no espaço público e de reivindicação política representam um tipo particular de violência que tem o objetivo de afastar as mulheres das ruas.
Para além disso, o caso revela desrespeito aos direitos constitucionais à liberdade de expressão e reunião, na medida em que a nudez parcial constitui, neste caso, elemento essencial da mensagem que o protesto buscava transmitir. A detenção e posterior persecução penal de uma manifestante pelo ato de protestar dessa maneira teve como consequência, além da desestabilização do protesto no momento, também um efeito intimidador que verdadeiramente limita o exercício destes direitos fundamentais pela ativista e também por outras mulheres.
Estes fatores são evidenciados na sentença que condenou Roberta, em agosto de 2016, a 3 meses de detenção, convertidos em multa no valor de R$ 1.000,00 por comportamento que supostamente ofendeu “o pudor ou a vergonha, causando um sentimento de repulsa e humilhação” na sociedade. Além desta valoração conservadora e insensível ao contexto e ao significado do ato em questão, também se questiona a escolha pela realização do protesto em local aberto ao público, desconsiderando-se o valor essencial do direito constitucional de reunião e a importância de que protestos sejam vistos e ouvidos.
Este caso também reflete o avanço do fundamentalismo religioso em nosso sistema político e jurídico, que carrega em si a ideia de que a exposição do corpo feminino, quando não está no contexto de maternidade e de outras funções socialmente aceitas e impostas, é pecado e deve ser punido. O fundamentalismo religioso é um movimento violento de tomada de poder que, para disfarçar sua intransigência e suas ações destruidoras de direitos, se reveste de autoridade moral e espiritual. No caso de Roberta, o discurso moral que a condena reforça a opressão autoritária e fundamentalista contra todas as mulheres que ousam protestar usando seus corpos
A despeito de certa articulação em torno do processo por entidades de direitos humanos, a condenação foi mantida pelo Colégio Recursal de Guarulhos em junho de 2017 e um Recurso Extraordinário será interposto para que o caso seja apreciado pelo Supremo Tribunal Federal. Diante de seu caráter emblemático para a luta das mulheres e também para a preservação dos direitos à liberdade de expressão e reunião no Brasil, faz-se necessária intensa mobilização da sociedade e da comunidade jurídica, com o objetivo de pressionar pela admissibilidade do recurso e, posteriormente, para que o STF decida pela reversão da condenação de Roberta e pelo descabimento da aplicação do crime retrógrado de ato obsceno a manifestações legítimas.
Assinam este manifesto:
Actantes
Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB)
ARTIGO 19
Barão de Itararé
Brigadas Populares
Casa da Cultura Digital Porto Alegre
Católicas pelo Direito de Decidir
Centro de Defesa da Vida e Direitos Humanos Carmen Bascaran
Centro de Direitos Humanos de Sapopemba
Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos
Coletivo Digital
Coletivo Feminista Yabá
Coletivo Marietta Baderna
Coletivo Mulheril de Advocacia Feminista
Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Goiás/Tocantins
Comissão Pro Índio
Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos
Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem)
Comitê Popular das Mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro- Projeto Militiva
Comunidade Quilombola Oriximiná
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – GO/TO
COR Araguaia/Tocantins
FASE Amazônia
Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI) – Pará
Filh@s e Net@s SP – DH, Memória, Verdade e Justiça
Fórum de Mulheres – DF
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)
Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH)
Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH)
Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS)
Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC)
Instituto Terramar
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Justiça Global
Marcha das Vadias – RJ
Marcha das Vadias – SP
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Mulher sem Violência
Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher Da Defensoria Pública de São Paulo (NUDEM)
Núcleo Marietta Baderna da RENAP
Operação Amazônia Nativa (OPAN)
Periferia em Movimento
Povo Apinagė – Tocantins
Povo Cedente – Tocantins
Povo Krahô – Tocantins
Povo Xerente – Tocantins
Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC)
Psicanalistas pela Democracia
Rede Feminista de Juristas – DEFEMDE
Rede Justiça nos Trilhos
Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP)
Sindicato dos Advogados de São Paulo
Terra de Direitos
União de Mulheres
UNIQUITA- Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de Itapecuru Mirim – MA
Amelinha Teles
Ana Paula dos Santos – SP
Anacleta Pires da Silva-MA
Antônia Laudeci Oliveira Moraes -TO
Carolina Bellinger- SP
Caroline Rios Santos- MA
Catiuscia C. De Souza – MT
Celia Regina Moraes-PA
Cristiane da Silva Soares- PA
Cristiane Faustino-CE
Ligia Alves Viana- CE
Darlete Santana da Silva-PA
Eliane Franco-TO
Elisangela Dias- TO
Elza Nammadi- TO
Elza Xerente-TO
Gercilia-TO
Idayane da Silva Pereira-MA
Isabel Maria L. Sousa-MA
Jaqueline Filipe dos Santos-AM
Jesiele Santos de Oliveira – MA
Joana Emmendi -RJ,
Jordânia da Conceição Silva-MA
Joseana Nascimento Moraes-PA
Jucilene Gomes Correia- TO
Larissa Pereira dos Santos-MA
Letícia Viana Silva- MA
Lisiane Molina Leffa, psicóloga
Lucineide Silva Souza – MA
Maju do Nascimento Silva – MA
Marleide Ferreira Rocha, Advogada Popular
Maria Agnes Néri Mwangi- RO
Maria Helena de S. Viana- TO
Maria Hilda de Sousa Santos- PI
Maria Moraes Carvalho – PI
Mariana de Lafuente – MA
Milena dos Santos Santos-AM
Patrícia Tuma Martins Bertolin, professora
Raimunda Pereira dos Santos-TO
Rosa Cantal, Advogada
Rosimeire Diniz Santos-MA
Sandecleia Modesto de Macedo-PI
Sandra Helena Maia- MT
Sandra Quintela-RJ
Sarney Souza-Rj
Sílvia Batista- RJ
Silvia Pimentel, Professora Doutora em Filosofia do Direito e integrante do Comitê CEDAW/ONU (Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU)
Sislene Costa da Silva-MA
Sônia Maria Alves da Costa, Advogada Popular
Suzete Gaia de Sousa-MA
Teresa Maria Fereira- MA
Tipuici Marta- MT
Valéria Pereira Santos-TO
Venilde de Jesus Silva- MA
Yackelyn Vasquesz Dias-MA
Yonna Luma Campos Fereira- MA
Zelene Viana dos Santos- PA
Zuleide Viana-PA
Foto: Oliver Kornblihtt – Mídia NINJA | CC BY-NC-SA 2.0