Na última semana de Outubro, a ARTIGO 19 organizou em Washington uma audiência temática perante a Comissão Interamericana para os Direitos Humanos, sobre o tema “Liberdade de expressão, desacato e crimes contra a honra no Brasil”. A presença nesta audiência surge no culminar de um trabalho intenso desenvolvido pelo Centro Jurídico da ARTIGO 19 no sentido de pesquisar, contabilizar e agregar informação jurídica sobre os processos com base nestes tipos penais que afetam de forma negativa a democracia brasileira.
Nesta audiência, a ARTIGO 19 demonstrou uma série de fatores prejudiciais e restritivos à liberdade de expressão e acesso à informação que resultam dos ditos crimes contra a honra (calúnia, difamação, injúria e desacato) previstos no Código Penal e Eleitoral do Brasil. No nosso entendimento, tal situação corresponde a uma violação do artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, uma vez que a responsabilização não dever ocorrer no âmbito criminal, e sim no âmbito civil. Por se tratar de uma medida que pode ensejar a censura e mesmo a autocensura, a previsão criminal da difamação sempre foi um tema que gerou grandes preocupações.
Para retratar o cenário dos crimes contra a honra no sistema jurisdicional brasileiro, a Artigo 19 se propôs a realizar uma pesquisa sobre a aplicação prática dos dispositivos penais de tais crimes, a saber, os artigos 138, 139, 140 e 331, tratando sobre os crimes de calúnia, difamação, injúria e desacato, respectivamente. Nesta pesquisa, foram coletadas decisões de processos criminais dos referidos crimes proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo além de decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, entre o período de março do ano de 2012 até o final do mês de setembro de 2013. No total foram analisados 512 acórdãos, sendo que 272 dos 512 casos (53%) referem-se a desacato, demonstrando desde já a frequente utilização destes tipos penais.
Uma das principais preocupações relacionadas ao uso deste tipo de difamação criminal é o forte “efeito refreador” que exerce sobre a liberdade de expressão no foro íntimo do indivíduo. Assim, as leis de difamação criminal podem resultar na imposição de sanções desproporcionais, tais como penas restritivas de liberdade e/ou multas de grandes valores, impondo forte inibição na expressão e manifestação de ideias. O “efeito refreador” causado pelas leis de difamação criminal é agravado pelo fato de que em muitos países, incluindo o Brasil, são os atores sociais mais poderosos – tais como os funcionários e agentes públicos, altas autoridades do governo e influentes homens de negócio – que apresentam a grande maioria das queixas-crimes. Estes indivíduos abusam das referidas leis visando se protegerem das críticas, opiniões ou da divulgação de fatos verídicos, porém vergonhosos ou que desejam ocultar.
Um dos casos, que pensamos ser demonstrativo dos efeitos de tais decisões, é o do jornalista José Cristian Goés. O caso refere-se a uma denuncia criminal feita pelo Ministério Público de Sergipe no dia 23 de janeiro de 2013 contra o jornalista e ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas, por um texto ficcional que fazia uma crítica ao sistema político e referia-se às entranhas do coronelismo, uma complexa rede de relações ainda hoje fortemente empregada, principalmente, no nordeste do Brasil. O artigo não cita nomes nem lugares, mas, segundo o desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe, Edson Ulisses, fere a sua honra, por haver a menção do termo “jagunço da lei”.
Muito recentemente, no dia 22 de outubro de 2013, o Tribunal de Justiça de Sergipe, em 2ª instância, acordou pela manutenção da condenação da pena de 07 meses e 16 dias de restrição de liberdade de Cristian. Importa notar que o relator do processo no Tribunal, o Desembargador Hélio Neto, aduziu que o processo criminal de Cristian era irregular e ilegítimo, mas mesmo assim teve seu voto vencido pelos outros dois desembargadores, mantendo-se acondenação.
Outro caso exemplificador de como a conceituação que se tem hoje sobre crimes contra a honra no Brasil funciona mais como uma forma de intimidação para aqueles que fazem críticas necessárias e legítimas no debate público do que para proteger a reputação de determinada figura pública é o da professora Maria Glória Reis. Reis publicou um artigo criticando as condições da cadeia pública da cidade e a negligência de juízes e advogados em relação à situação dos presos. Ela também não citou nomes nem cargos, mas teve que responder a um inquérito policial por ter supostamente ofendido o juiz José Alfredo Jünger de Souza Vieira, o qual era responsável por acompanhar o cumprimento das penas e monitorar as prisões. A professora foi condenada criminalmente por difamar o juiz,tendo sido a pena convertida em prestação de dinheiro por se tratar de ré primária.
Esses casos mostram como qualquer pessoa que expresse uma opinião mais crítica da realidade social e política está sujeita a processos criminais por difamação simplesmente por questionar essa realidade. Esses crimes expõem o acusado a um desgaste emocional e financeiro além de causar resultados negativos para a liberdade de expressão e mesmo para o sistema democrático na medida em que inibe qualquer tipo de crítica política. Pesquisa realizada pela ARTIGO 19 indica que o uso desses tipos penais é grande, uma vez que já mapeamos quase 800 casos, em apenas XX estados brasileiros.
Representação do Estado brasileiro
A delegação destacou a atual reforma do código penal em discussão no Senado Federal e salientou a proposta de suprimir o crime de desacato,mantendo-se no entanto, os delitos contra a honra (calunia, injuria e difamação) aos quais foram acrescidas a honra e memória à pessoa morta. A delegação referiu ainda o aumento da pena quando esses crimes são praticados contra um funcionário público, passando esta de 1/3 para o dobro.
Atualmente em pauta no Senado, a reforma é referente ao projeto de lei n° 236 de 2012, de autoria do Senador José Sarney. Embora tal projeto tenha como objetivo não só uma mera reforma, mas também uma adequação social do código aos novos tempos, ele ainda preserva os tipos penais dos crimes contra a honra – mantendo o crime de injúria que possibilita a criminalização de opiniões, bem como dobrando a pena contra funcionários públicos – em clara e danosa inércia frente à proteção do direito fundamental à liberdade de expressão e, portanto, à democracia no Estado brasileiro.
Considerações finais da Comissão
Os comissionados presentes na audiência mostraram satisfação perante a reforma penal anunciada, no entanto demonstraram acompanhar a ARTIGO 19 nas suas demandas, ao salientar os problemas que persistem, em particular no que diz respeito à permanência e aumento de pena para crimes contra funcionários públicos, nomeadamente no caso do crime de desacato, aspecto realçado pelo comissário Felipe González na sua intervenção. Algo que foi também referido por alguns comissionados foi o fato de não haver qualquer diferença no código penal entre uma expressão de fatos e uma expressão de opiniões.
Catalina Botero, Relatora para a Liberdade de Expressão, salientou a questão do desacato em relação aos funcionários públicos, alertando para “a desproporção que tal pode gerar numa sociedade democrática e no vigor do debate democrático.”
O Estado brasileiro afirmou que levará as considerações efetuadas para o relator responsável pela reforma do código penal, para que a legislação brasileira possa se aproximar cada vez mais dos parâmetros interamericanos.
Por fim, A ARTIGO 19 ressaltou a importância de discutir a proporcionalidade do direito à liberdade de expressão particularmente no atual contexto vivido no Brasil, com fortes manifestações nas ruas, um fenómeno social que se prevê que persista em 2014.