Em 2020, o “Mulheres Negras de Expressão – Desconstruindo Mitos” abordou o atual momento político brasileiro a partir de uma reflexão coletiva e do trabalho de comunicadoras negras, relacionando com o conceito de “mito” e suas interpretações diversas no atual cenário.

A ARTIGO 19 promoveu ao longo de 2019 um encontro com mulheres comunicadoras de diferentes estados, uma roda de conversa aberta ao público, uma edição especial do Sarau das Pretas, além de entrevistas com mulheres negras que mobilizam a comunicação como ferramenta política para buscar transformações necessárias.

Esse site resume os temas levantados através de um mini-documentário que busca provocar reflexões sobre a importância da presença de mulheres negras no campo de comunicações. Só garantimos liberdade de expressão e informação, com pluralidade de vozes!

SUMÁRIO

Mini-documentário

Em dezembro de 2019, a ARTIGO 19 promoveu um encontro entre mulheres negras comunicadoras em São Paulo. Este mini-documentário reflete suas discussões sobre possibilidades, desafios, criações e transformações. Confira:

O encontro

Em 02 de dezembro de 2019, o encontro “Mulheres de Negras Expressão: desconstruindo mitos” contou com a participação de: Buba Aguiar, Educomunicadora do Coletivo Fala Akari (RJ), Juliana Cézar Nunes, jornalista da EBC (DF) e Lívia Teodoro, do blog Na Veia da Nêga (MG). Também com uma edição especial do Sarau das Pretas.

Foi uma oportunidade para refletir e compartilhar experiências entre semelhanças e diferenças, desafios e potências, buscando entender a visão das comunicadoras e das participantes sobre as interseccionalidades do ser mulher, negra e comunicadora.

Mais de 30 mulheres participaram das atividades, dialogando sobre a importância da comunicação para a resistência em um momento de intensificação de discriminações e violações no Brasil, fomentando, assim, mais um espaço de debate e de articulação entre mulheres negras na comunicação, entendendo que se mulheres enfrentam desafios próprios ao atuar no campo da comunicação, mulheres negras têm esses desafios amplificados frente o racismo estrutural na sociedade brasileira.

Perfis

Buba Aguiar é militante e comunicadora do Coletivo Fala Akari, patologista e estudante de licenciatura em Ciências Sociais da UFRJ. Assessora de comunicação do filme Arame Farpado, e colunista do site Superela. Formada em técnica de Análises Clínicas pela FAETEC e em Comunicação Comunitária pela RACC da Agência de Notícias das Favelas.

Juliana Cézar Nunes é jornalista e doutoranda na Faculdade de Comunicação da UnB, linha de pesquisa Poder e Processos Comunicacionais. Estuda comunicação negra e quilombola. Integra a coordenação-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF. Faz parte da irmandade Pretas Candangas e da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF).

Lívia Teodoro é jornalista popular, designer e graduanda em História pela UFMG, além de blogueira e youtuber desde 2015. Antirracismo, feminismo negro, diálogos francos sobre bissexualidade e maternidade solo a partir da ótica de uma jovem negra e de periferia marcarm suas produções.

Sarau das Pretas

O Sarau das Pretas é uma iniciativa artístico-literária protagonizada por jovens mulheres negras atuantes no cenário cultural periférico da cidade de São Paulo (SP). O espetáculo acontece por meio da palavra falada, cantada, declamada, dos tambores e de seus corpos em constante movimento. Em cena, Débora Garcia, Elizandra Souza, Jô Freitas, Taissol Ziggy e Thata Alves, propõe reflexões sobre o feminino, a cultura e a ancestralidade.

O Sarau das Pretas constrói sua trajetória propondo encontros nos quais a escuta é o ponto central, partilhando a palavra e a ancestralidade. A organização do sarau entende que não delimitar um único espaço estimula outras mulheres negras a ocuparem todos locais. Por isso, já foram realizadas edições dentro e fora das periferias, tudo como forma de criar, fortalecer e ampliar os espaços de fala e audição das mulheres negras do país.

Um desses espaço foi o encontro Mulheres Negras de Expressão – Desconstruindo Mitos. Essa edição especial, com microfone aberto, foi um momento de energizante, de forte expressão cultural negra, com poesia, rap, música, batuques e cantorias, culminando em uma troca que reforçou a importância da ancestralidade no caminhar para o futuro. A oralidade, enquanto pilar da cultura africana, é um dos pilares do levante negro contemporâneo.

Desconstruindo mitos

A ideia de mito é abrangente e fluida: nasce como a história clássica de diferentes culturas, passa a ser aquilo que, apesar de difundido, foi superado pelos fatos, comprovadamente inverdade. E, na era da desinformação, o conceito é sequestrado, usado à revelia para desqualificar aquilo que cada um não quer acreditar, independente dos fatos. É apropriada ainda por ícones neo-fascistas que se alçam ao poder a partir do uso da imagem divina, onde ‘mito’ faz uma referência ideológica romantizada aos heróis representados em enredos alegóricos, que passam por provações para enfim, tornarem-se deuses imortais.

Cruza ainda a história brasileira, que é atravessada por inúmeros mitos raciais, como o “mito da democracia racial”. Através da afirmação de que há justiça racial em nosso país, esse mito apaga as pautas do movimento negro e reforça a ideia errônea de que o racismo é exercido apenas através de agressões pontuais diretas – quando os fatos mostram que é um problema estrutural e histórico.

“Nós estamos aqui para falar de pessoas negras que se destacaram, por que estamos reforçando aqui o mito da democracia racial. E é isso, pega um negrinho daqui e outro dali e mostra que é maravilhoso e continuamos como ‘Dantes no Quartel de Abrantes’”, Lélia Gonzalez

Incluem também os estereótipos sobre a figura dos pretos e pretas no imaginário social. No caso da mulher negra, historicamente, duas narrativas da branquitude se destacam: o mito da mulher negra raivosa e o mito da mulher negra guerreira. Ambos são invocados para desqualificar comportamentos quando eles incomodam. Se a mulher negra tem “resiliência”, se ela, em silêncio, sobreviveu, é considerada guerreira. Agora, se ela ousa falar, é raivosa. Deve ser rapidamente contida e é alvo de execução – física ou emocional.

“Se você ficar em silêncio sobre sua dor, eles irão te matar e dizer que você gostou”, Zora Neale Hurstonpic

As mulheres reunidas no encontro mostraram que não existe uma realidade da mulher negra. É preciso respeitar identidades, individuais e coletivas, e a diversidade de expressões que existem dentro delas. Porém, existem fatores político-sociais que estruturam possibilidades, caminhos e conquistas que são partilhadas. Esses fatores se apresentam para todas as mulheres negras e se potencializam, conforme as diferentes realidades e intersecções de cada uma.

“A mulher negra surda é triplamente excluída da conscientização política por que ela é mulher, por que ela é negra e por que ela é surda”, Patrícia Cardoso, intérprete de Libras no IFSP Pirituba, em fala durante a roda de conversa “Mulheres Negras de Expressão”

Essa questão atinge mulheres que produzem comunicação e permeiam relações com instituições, organizações da sociedade civil e empresas, que tendem a reproduzir lógicas racistas e pactos da branquitude, reforçando o racismo estrutural e institucional. É comum que mulheres negras sejam convocadas para contribuir enquanto “o recorte”, trazendo a “perspectiva negra” sobre determinados assuntos e ficando sempre sujeitas a ensinar “o que é ser negra”, quando devem ser valorizadas também pelos interesses e experiências que desenvolvem em seus trabalhos.

Outro fator importante que emergiu nas reflexões do Mulheres Negras de Expressão é a disputa de narrativas, enquanto uma exigência constante e exaustiva. A intensificação de campanhas de desinformação, de ataques e do discurso de ódio age para “justificar” e natualizar pautas genocidas. Há centenas ou milhares de novos conteúdos sendo gerados para deslegitimar determinadas vozes e justificar a crueldade.

“Ter voz ativa contra o racismo é mexer nessa mesma caixa de temas sensíveis para uma sociedade conservadora. E isso faz com que nós estejamos fadadas a sofrer ataques”, Lívia Teodoro

Por isso, as reflexões que as comunicadoras convidadas trouxeram são permanentes: qual a comunicação que fazemos? e quais estratégias são necessárias para que nossas histórias sejam prioridade, não alternativa ou recorte?

“Não podemos esquecer que a comunicação é um campo de batalha por poder. Se perdemos essa dimensão, perdemos o sentido da luta por esses direitos. Se as mulheres negras fossem representadas com dignidade na mídia e sua agenda política tivesse visibilidade, a correlação de forças na sociedade mudaria muito”, Juliana Nunes

Comunicação, política e estratégia

Se por um lado, as violações históricas e estruturais são enormes, as estratégias de resistência negra são ainda mais diversas e potentes. Griots, linguagens, batuques, melodias, rituais, instrumentos, danças, símbolos, monumentos, tranças, letras de música são algumas das muitas expressões da sabedoria, criatividade e inteligência inquestionável de povos que, desde sua diáspora, usam a comunicação política com propriedade histórica.

No momento atual, de falsas equivalências, em falsos ídolos e falsas informações, entendemos que um dos pilares de atuação e luta tem que ser o investimento em educação e comunicação. Isso requer parceria e investimento em estrutura e no desenvolvimento de talentos para que mulheres negras e periféricas possam contar suas histórias e alcançar cada vez mais pessoas. Para que suas vozes sejam amplificadas e não somente para falar sobre sua negritude. Para que a pluralidade de vozes reflita na diversidade cultural, social e de conhecimentos no país, sem silenciamentos e invisibilização.

É também necessário fazer uso de ferramentas e conquistas e lutar pela sua permanência e atualização. Um exemplo é o impacto das políticas de transparência no exercício da comunicação: a Lei de Acesso à Informação tem sido uma forte aliada das comunicadoras na construção de narrativas e no uso da comunicação para incidência política. Foi a via mobilizada, recentemente, para solicitar informações sobre raça cor nos números de infectados e vítimas da pandemia do novo coronavírus, revelando a crise de saúde pública é atravessada por desigualdades.

O uso de expressões é outro ponto a ser tensionado para desnaturalizar os ideais que carregam. Usar o termo “escravo” ao invés de “escravizado” é um exemplo: o primeiro, atribui à pessoa uma condição permanente e incontestável. Mas, com “escravizados” a narrativa muda – agora explicita-se que é um ser-humano que foi escravizado por outro. Na primeira alternativa há uma naturalização da atrocidade, enquanto na segunda ela vem pelo primeiro plano e há a devida responsabilização.

Vozes-Mulheres (Conceição Evaristo)

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.

A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.

A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
Fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.

(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).

Múltiplas vozes: entrevistas

Para marcar o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (25 de julho), a ARTIGO 19 produziu uma série de entrevistas a partir da data com mulheres negras, que reúnem a potência de quem utiliza o seu protagonismo em discussões sobre discriminações de gênero, raça e classe e outros temas na comunicação.

As entrevistas reforçam que só se tem a liberdade de expressão efetivada quando múltiplas vozes rompem as barreiras estruturais e se fazem presentes no debate público.

Confira:

>> Entrevista Débora Silva: “aprendi a usar a comunicação para lutar por justiça junto com outras mães pretas que perderam os seus filhos para a violência do Estado”

>> Entrevista Lívia Teodoro: “a comunicação é um direito de quem faz e também de quem recebe”

>> Entrevista Juliana Nunes: “a comunicação é um ambiente estratégico para o movimento negro”

>> Entrevista Morena Mariah: “a única forma de chegarmos ao futuro é criando agora os mecanismos e condições necessárias para mudar o curso da história”

>> Entrevista Kelly Quirino: “precisamos pensar as políticas públicas com recorte racial”

>> “Tenho estado particularmente preocupada com a disseminação do discurso de ódio direcionado às mulheres negras”, alerta a relatora da CIDH, Margarette May Macaulay



Realização: ARTIGO 19
Textos e entrevistas: Bárbara Heliodora e Júlia Cruz
Fotos e vídeos: Evelyn Arruda e Matheus Oliveira
Edição do mini-documentário: Zalika Produções